quarta-feira, 16 de abril de 2014

Coimbra e os colégios da Rua da Sofia

O Museu Nacional de Machado de Castro e a sua Liga de Amigos têm vindo a organizar caminhadas temáticas pelas ruas do centro histórico de Coimbra, sempre iniciadas no Museu com as peças ligadas ao período histórico visitado.

Um dos mapas distribuídos na última caminhada
É sabido que a malha urbana de Coimbra, como qualquer cidade multi-secular ou milenar, foi sofrendo alterações ao longo dos séculos, sendo a mais recente (?) ou a mais conhecida, a destruição de parte significativa da Alta coimbrã, um verdadeiro atentado de lesa património e de desprezo pelas vidas dos seus habitantes. Só há muito pouco tempo conheci o Bairro de Celas, construido para albergar grande parte dos deslocados pobres da Alta, e chocou-me perceber que foram transferidos para uma zona bem periférica, à época, sem respeito pela sua identidade, hábitos de vizinhança, costumes (como a Feira dos Lázaros, tradição da Alta que se realizou no penúltimo domingo em dois locais diferentes...)
No entanto, apesar das destruições e mudanças, a riqueza do edificado desta cidade pode ainda surpreender e deslumbrar qualquer amante de História, de História de Arte, de Arquitetura...
Foi o que me aconteceu no último percurso da série, com o título "Arquiteturas de Sabedoria - os colégios da Rua da Sofia", iniciada no Museu com obras de João de Ruão (1500-1580). Este é o nome maior da arte renascentista coimbrã, com vasta obra arquitetónica e escultórica nesta cidade, particularmente nos colégios da Rua da Sofia.

Deposição de Cristo no Túmulo, de João de Ruão, no Museu Machado de Castro, originalmente no Mosteiro de Santa Cruz

Capela do Tesoureiro, de João de Ruão, proveniente de um dos conventos da Rua da Sofia, atualmente parte do acervo do MNMC

Na descida da Alta para a nossa rua de destino, paragem no Jardim da Manga - o claustro quinhentista do Mosteiro de Santa Cruz, uma das obras mais marcantes de João de Ruão, cheia de harmonia e poder simbólico. Ali predominam formas círculares, o templete central com as suas colunas, os arcos ligando-o a quatro pequenas capelas cilíndricas que tiveram os seus retábulos, e depois os quatro tanques em L sempre com água, a fonte da vida...

Claustro da Manga do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
É um lugar bem emblemático da cidade, este espaço ajardinado que está certamente na memória de quantos por ali passaram. Muitos, tal como eu, na santa ignorância juvenil dos tempos de Coimbra, nem se terão apercebido da qualidade da obra que ali está  nem de que afinal se tratava de um sóbrio mas requintado claustro quinhentista, contando assim com vários séculos de existência.

O traçado largo e retilíneo da Rua da Sofia

Quanto à Rua da Sofia (ou da sabedoria), ninguém diria que esta rua larga, comprida e retilínea foi rasgada há quase 500 anos, para albergar um complexo de edifícios colegiais destinados aos alunos do ensino superior, integrados no processo de transferência definitiva da Universidade, de Lisboa para Coimbra, no reinado de D. João III. Com este peso histórico, não admira que esta rua tenha sido incluida, com a Universidade e a Alta, no património classificado da Unesco, sendo hoje Património da Humanidade.

Convento de S. Domingos - hoje um centro comercial - de onde saiu a Capela do Tesoureiro do MNMC
Tendo sido pelo menos sete os colégios construídos na Rua da Sofia, visitámos apenas o interior de dois e respetivas igrejas: o Colégio da Graça (1543)  e o Colégio do Carmo (1540). Mas deu para ter uma ideia da quantidade de tesouros ignorados do cidadão comum que se escondem por trás destas vetustas fachadas, apesar das vicissitudes dos tempos que já viveram e da delapidação que alguns edifícios já sofreram.

Igreja e Colégio da Graça

Interior da igreja

Igreja e Colégio do Carmo

Interior da igreja

Deposição de Cristo no Túmulo, de João de Ruão, na sacristia da Igreja do Carmo

Durante estas visitas cheias de motivos de interesse histórico e artístico - os dois conjuntos escultóricos de João de Ruão são disso um bom exemplo - é inevitável que a minha atenção se fixe também na arte cerâmica dos revestimentos - azulejos de padrão dos séculos XVII e XVIII, azulejos de figura avulsa e painéis rococó -  apesar de não terem merecido grande relevo na orientação da visita.

Azulejos de padrão do séc. XVII na Igreja da Graça

Azulejos de figura avulsa formando painel com cercadura - Colégio da Graça

Curiosa combinação de azulejo de figura avulsa intercalado com representação de balaústres - Colégio da Graça

Azulejo de figura avulsa a intercalar desenhos de vasos floridos ou albarradas - Colégio da Graça
No Colégio do Carmo fui surpreendida por um revestimento, a toda a volta do claustro, de 19 belíssimos painéis historiados ao estilo rococó ou rocaille, recentemente restaurados, ilustrando a vida do Profeta Elias.
Atribuindo-se os azulejos de figura avulsa destes colégios a fabrico coimbrão, talvez o mesmo se passe com estes painéis rocaille, dada a coincidência no tempo com a Reforma Pombalina da Universidade, com fabrico local de azulejo e telha para as obras, na Fábrica da Telha Vidrada, criada expressamente para esse efeito.

Claustro do Colégio do Carmo com painéis de azulejos

A vida do Profeta Elias em painéis rococó
Pormenor de um dos painéis
E ao subir ao piso superior do claustro, fiquei encantada com este silhar a toda a volta, a imitar tecido bordado, a que não faltam largos galões com borlas, uma composição que poderia funcionar lindamente como frontal de altar, à maneira dos do século XVII.

Silhar do piso superior do claustro do Colégio do Carmo

Capela anexa à Igreja do Carmo com azulejos enxaquetados e magníficos painéis azulejares
Alonguei-me talvez demasiado neste regresso, que já tardava, às publicações no blogue, mas queria muito partilhar aqui as minhas descobertas nesta interessante viagem no tempo por lugares de Coimbra. Foram tantas as surpresas e os motivos de interesse que não consegui ser mais sucinta. 
Dos vários percursos realizados, de que estão já agendadas repetições para os sábados de Abril e Maio, este foi o que me impressionou mais, mas todos valeram/valem bem a pena!

Atualização: Graças à iniciativa "Percursos do Azulejo", da Rede dos Museus de Coimbra, para comemorar o Dia dos Museus a 17 e 18 de Maio de 2014, e à informação que obtive na obra de Diana Gonçalves dos Santos "Azulejaria de Fabrico Coimbrão (1699-1801)..." que se encontra online,  sei agora que não só os azulejos de figura avulsa e albarradas aqui apresentados são garantidamente de fabrico coimbrão, de finais do séc. XVII inícios do XVIII, atribuídos a Agostinho de Paiva, mas também são de fabrico local os painéis historiados sobre a Vida do Profeta Elias do 3º quartel do séc. XVIII, atribuídos a Salvador de Sousa Carvalho, o silhar azul e branco que reproduz tecido lavrado e ainda os painéis com molduras recortadas que se vêem na capela da última fotografia, ambos os casos datados do 2º quartel do séc. XVIII e de autoria desconhecida.