Quando se trata de abordar aqui faiança portuguesa, as peças, na maioria não marcadas, são um verdadeiro quebra-cabeças. Por isso, quando aparece alguma com marca, mesmo que difícil de identificar, é uma verdadeira bênção!
Sabemos que a partir do final do século XVI ou início do XVII, os malegueiros portugueses, sobretudo lisboetas, desenvolveram o fabrico de faiança azul e branca, tentando imitar e competir com a porcelana chinesa Ming que chegava ao porto de Lisboa nas caravelas e naus da Carreira das Índias.
Cerca de século e meio mais tarde, após o Terramoto que, com a destruição colossal que provocou em Lisboa, pôs termo a muita dessa produção cerâmica, que aliás já estava em declínio, foi o Marquês de Pombal o grande incentivador da abertura de manufacturas de loiça, não só em Lisboa com a Real Fábrica de Louça ao Rato, mas também noutros locais do país que lhe seguiram o modelo.
Fábrica de Massarelos, Porto |
No Porto, a primeira foi a de Massarelos, fundada em 1763 ou 1766 por Manuel Duarte Silva , que criou ali uma empresa familiar.
Ora este prato apresenta uma marca que José Queirós data ainda do século XVIII e que Artur de Sandão identifica como fabrico de Massarelos, do primeiro período da história da empresa (1766-1819).
O B maiúsculo acompanhado de uma espécie de acento circunflexo, neste caso a azul, mas também aparece a verde e a cor de vinho, é uma marca já referenciada por José Queirós na sua obra Cerâmica Portuguesa, de 1907, atribuindo-a a fabrico do Norte do fim do séc. XVIII, sem avançar com qualquer nome de fábrica.
Foi Artur de Sandão que ao encontrar peças muito idênticas, umas com esta marca e outras com marca já identificada como Massarelos, concluiu tratar-se do mesmo fabrico.
Este prato, com aba recortada ainda ao estilo Rocaille, segue uma moda decorativa que se encontra noutras produções portuguesas da mesma época, não só na fábrica do Rato, mas também em Viana, no Juncal e em Miragaia, com a flor de morangueiro ao centro e a chamada faixa de Rouen à volta da aba.
Sobre esta faixa dita de Rouen, já uma vez escrevi que estas modas nas artes decorativas me parecem uma pescadinha de rabo na boca. É que não é nada difícil perceber que nestas decorações ruanescas houve influência da porcelana chinesa azul e branca que já tinha inspirado os malegueiros portugueses do século XVII. Foi essa nossa faiança que, ao ser exportada para os países do centro e norte da Europa, ajudou a cimentar o gosto por esse tipo de decorações e as fez chegar à mesa do cidadão burguês, que não conseguia chegar à preciosa e delicada porcelana da China. Depois surgiu nesses países produção própria continuando a inspiração nos motivos chineses: na Holanda a conhecida faiança de Delft, na Inglaterra a chamada English Delft e na França penso que será a faiança de Ruão a entroncar nesta tendência.
Parece que foi então a vez de Portugal ir buscar à Europa além Pirinéus um modelo inspirado na porcelana chinesa que o nosso país, duzentos anos antes, tinha tido um papel fundamental em tornar mais conhecida e apreciada.
Prato da Fábrica do Rato marcado FRTB ( catálogo online da leiloeira S. Domingos) |
Prato de Viana (catálogo online da leiloeira S. Domingos) |
Olá Maria
ResponderEliminarMuito bom e bem fundamentado o seu texto sobre o prato de Massarelos, decorado com a faixa de Rouen e a flor do morangueiro, também muito utilizada por artistas de outras fábricas, como a conceituada Fábrica do Rato.As influências que se faziam sentir podem ter origem no intercâmbio de artistas e gravuras que circulavam quer no nosso país, quer na Europa.
Um abraço
if.
Olá If,
EliminarFico muito satisfeita pelas suas palavras de apreço em relação ao texto. Assim vou coligindo as ideias que me ficam de tanta coisa que vou vendo e lendo, mas não passa de um texto de amadora.
É verdade que as inflências mútuas que se fizeram sentir entre as várias manufaturas de faiança se devem muito à circulação de artistas e até de trabalhadores, só não me tinha ocorrido, em relação ao séc. XVIII a circulação de gravuras, mas faz todo o sentido que isso tenha acontecido. Há sempre uma ideia nova, um novo ponto de vista, sempre enriquecedor, que surge destes comentários...
Um abraço também para si
Partilho inteiramente a opinião da IF. Belo post, muito bem escrito e didáctico. Ainda hoje conversei com o conservador de faiança do Museu que defende uma posição idêntica à sua.
ResponderEliminarO prato é lindíssimo
Jesus, Luís, que belo feedback me dá aqui!
EliminarFico satisfeitíssima por saber que há pessoas a esse nível que partilham a minha opinião.
Claro que eu não descobri a pólvora :), basta juntar dois e dois... e eu consegui juntar dois e dois graças ao trabalho de muitos estudiosos que vão contando a história e lançando pistas...
Também acho o prato lindo na sua sobriedade do azul e branco.
Abraços
Nem sempre esses dois mais dois dão conta certa, se não forem acompanhados por uma cabeça pensante, conhecimento de base que esteja coerente e solidificado com leituras sobre as várias opiniões e, sobretudo, investigação sobre o que se foi estudando ao longo do tempo, dentro do ramo, para além, como convém, da observação atenta e cuidada de muitas peças originais - compensaria tê-las na mão, mas isso, nos museus, seria pedir demasiado (quando se está nesta secção do museu compensa ver como o vulgar visitante repara nas peças ... até parece que os sapatos têm corda ... demora cerca de 2 a 3 minutos a passagem por mais de 3 séculos de faiança portuguesa! E estes são os que se dão ao trabalho de entrar nestas salas!).
ResponderEliminarÉ a diferença de somar dois mais dois, ou fazê-los sumir até zero!
O prato que aqui nos mostra é um encanto, com a flor de morangueiro e a banda ruanesca!
Um belíssimo post didático e fácil de absorver, para quem estiver interessado nestas lides da faiança.
Uma boa semana
Manel
Olá Manel,
EliminarMuito obrigada pelo seu comentário.
Aqui vamos tentando fazer o nosso melhor, mas o terreno que pisamos não é muito seguro...
Quando as faianças estão marcadas, como é o caso deste prato, a tarefa fica facilitada, mas ainda hoje me interrogo sobre o significado daquele B.
É verdade que o ideal seria passarem-nos muitas peças pelas mãos, conseguir distingui-las pelo peso e pela pasta, mas a observação de exemplares em museus ou em coleções particulares já dá uma grande ajuda.
Uma boa semana (já só mais três dias) também para si. Um abraço