O que haverá de comum entre as Metamorfoses de Ovídio, um quadro de Bruegel e dois poemas de autores do século XX?
Há um caso notável de intertextualidade seguindo um tema que sinto muito atual e quis trazer aqui, desviando-me desta vez das habituais temáticas do blogue. Descobri-o há seis anos por esta altura, ao preparar uma comemoração do centenário de W. H. Auden (York, 21 de fev. 1907 - Viena, 29 de set. de 1973)
![]() |
Paisagem com a queda de Ícaro (Landschaf met val van Icarus) atribuído a Pieter Bruegel o Velho (1525-1569) |
Terá sido ao mito grego de Dédalo e Ícaro, narrado por Ovídio nas Metamorfoses, que Bruegel foi buscar inspiração para esta paisagem. À primeira vista uma de entre muitas fabulosas paisagens da pintura flamenga renascentista, há um "simples" pormenor no lado direito - umas pernas no ar de um corpo que mergulha no mar - que faz toda a diferença e dá título à composição: Paisagem com a queda de Ícaro.
Por sua vez o poeta W. H. Auden, inglês de nascimento, mas vindo a naturalizar-se americano, certamente impressionado por esta obra dos Museus Reais das Belas Artes da Bélgica, em Bruxelas, desenvolve o tema num poema. Nele discorre sobre a indiferença dos homens ao sofrimento do seu semelhante e descreve a cena da pintura. O mesmo faz o poeta americano William Carlos Williams (1883-1963), dando ao seu poema o mesmo título do quadro de Bruegel.
Deixo aqui os originais e as traduções que alinhavei.
Musée des Beaux Arts
by W. H. Auden (1938)
About suffering they were never wrong,
The old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
The old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water, and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.
Museu das Belas ArtesQuite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water, and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.
de W. H. Auden (1938)
Sobre o sofrimento eles nunca se enganaram,
Os velhos Mestres; como perceberam bem
A sua condição humana: como ele ocorre
Enquanto alguém come ou abre uma janela ou simplesmente passeia;
Como, enquanto os mais velhos aguardam ardentemente e com reverência
o milagroso nascimento, tem de haver sempre
Crianças, para quem ele é indiferente, a patinar
Num lago à beira do bosque;
Eles nunca esqueceram
Que até o martírio atroz deve seguir o seu curso
Algures a um canto, num local sórdido
Onde os cães levam as suas vidas caninas e o cavalo do algoz
Esfrega numa árvore o inocente traseiro.
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: como tudo vira costas
despreocupadamente ao desastre;
o lavrador por certo teria
Ouvido o baque, o grito desamparado,
Mas para ele não era uma desgraça importante; o Sol brilhava
Como devia nas pernas brancas que se sumiam no mar esverdeado;
e o navio dispendioso e delicado que deve ter visto
Algo de extraordinário, um rapaz a cair do céu,
Tinha um destino onde chegar e continuou a vogar tranquilamente.
Landscape with the Fall of Icarus
by William Carlos Williams
According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring
when Icarus fell
it was spring
a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry
his field
the whole pageantry
of the year was
awake tingling
near
the edge of the sea
concerned
with itself
awake tingling
near
the edge of the sea
concerned
with itself
sweating in the sun
that melted
the wings' wax
that melted
the wings' wax
unsignificantly
off the coast
there was a splash
off the coast
there was a splash
quite unnoticed
this was
Icarus drowning
Icarus drowning
Paisagem com a queda de Ícaro
de William Carlos Williams
Segundo Bruegel
quando Ícaro caíu
era primavera
um lavrador arava
o seu campo
e toda a pompa
do ano
estava desperta
vibrando perto
da beira do mar
concentrada
em si
suando ao sol
que derreteu a
cera das asas
insignificante
junto à costa
houve um baque
totalmente despercebido
era Ícaro
a afogar-se
Incomoda-me, choca-me até, a indiferença perante o sofrimento e o crescente mal-estar das pessoas que carateriza a nossa atualidade política.
Será da natureza humana de todos os tempos um certo distanciamento das desgraças alheias, sobretudo quando não está ao seu alcance remediá-las. Mas o que se passa hoje é que ostensivamente e inexplicavelmente, as vidas da gente comum deixaram de preocupar quem, a nível nacional ou supra-nacional, tem o poder e o dever de tomar decisões que lhes sejam favoráveis... e eu acho isso não só uma regressão, mas uma perversão!