terça-feira, 21 de abril de 2015

Azulejaria coimbrã na Igreja de Santa Catarina da Anobra



Painel de azulejos do século XVIII de fabrico coimbrão - Nascimento da Virgem

Desde que tive acesso á tese de doutoramento em História da Arte Portuguesa apresentada à FLUP por Diana Gonçalves dos Santos: Azulejaria de Fabrico Coimbrão (1699-1801) Artífices e Artistas. Cronologia. Iconografia. abriu-se-me um mundo rico e variado de descobertas, ao encontro da arte azulejar de produção coimbrã, num período que corresponde, grosso modo, ao século XVIII. Passei a visitar com especial interesse muitos locais de Coimbra e arredores onde essa azulejaria estava já identificada por J. M. dos Santos Simões em Azulejaria em Portugal no Século XVIII, mas só agora  estudada em profundidade e fotografada nesta tese de doutoramento.
Diana G. Santos fez um levantamento exaustivo de todos os exemplares existentes, num espaço geográfico que abrange nove distritos do centro e norte de Portugal - de Leiria a Viana do Castelo e de Aveiro à Guarda - mas que naturalmente tem uma concentração mais notória no distrito e concelho de Coimbra. Na cidade são dezenas os sítios onde se podem apreciar azulejos de figura avulsa, albarradas e vasos floridos, painéis figurados e narrativos, registos de santos... e é um prazer apreciar pormenores, comparar estilos e tentar adivinhar autorias.
Foi em Maio do ano passado, durante a iniciativa "Percursos do Azulejo" levada a efeito pela Rede de Museus de Coimbra para assinalar o Dia Internacional e Noite dos Museus, que tomei conhecimento de toda esta realidade em visitas guiadas dentro da cidade - Paço das Escolas, Museu Machado de Castro, Colégios da Alta - algumas delas orientadas pela própria autora do estudo aqui referenciado. Ao consultar a obra, apercebi-me com admiração que também as pequenas igrejas do concelho de Coimbra e concelhos limitrofes, dispunham de núcleos muito interessantes de azulejaria coimbrã e constavam do levantamento feito por Diana Gonçalves dos Santos.

Capela de Nossa Senhora da Conceição, a antiga Capela do Santíssimo

A que tive mais curiosidade em visitar foi a Igreja de Santa Catarina, na Anobra, uma freguesia próxima de Coimbra pertencente ao concelho de Condeixa-a-Nova, com um interesse acrescido para mim desde que descobri, não há muito tempo, ser dali proveniente um ramo da minha família paterna, algumas gerações atrás. Eu não conhecia  a igreja e logo por azar foi este um dos poucos casos em que não foi possível à autora fazer a visita e fotografar os exemplares azulejares de forma a  incluí-los na obra.  
Tinha portanto que ir ao local e encontrar a igreja aberta para apreciar e fotografar os painéis de azulejos que estavam descritos  por Diana Santos, com base no trabalho de Santos Simões, mas sem qualquer imagem a acompanhar.
Quando entrei na nave da Igreja da Anobra fiquei desolada. Havia azulejos, sim, mas daquelas horrorosas cópias da azulejaria de padrão do séc. XVII com um brilho novíssimo que até ofusca! Temi o pior, já que não me lembrava que a localização dos azulejos do séc. XVIII se limitava a uma capela lateral. Perguntei a uma senhora se não havia na igreja painéis de azulejos antigos e ela lá me indicou a capela lateral que ela chamou de Nossa Senhora da Conceição, mas que era a antiga Capela do Santíssimo.
Aí, sim, havia exemplares notáveis de painéis de espaldar recortado com quatro cenas da vida de Maria, ilustrando os seguintes momentos:  Nascimento, Casamento, Anunciação e Assunção.
Nascimento da Virgem

Desposórios da Virgem

Anunciação

Assunção da Virgem

Como se pode ver, todos os painéis são compostos de azulejos com pintura a azul e branco, mas no primeiro - não consegui ver a base do 2º e do 3º -  é visível um rodapé de azulejos marmoreados a verde e manganês, muito típicos da produção coimbrã.


Azulejos marmoreados de produção coimbrã - 3º quartel do séc. XVIII

O que mais me encantou foi a representação do nascimento de Maria em duas cenas no mesmo painel - ao fundo vemos Santa Ana ainda de cama prestes a dar à luz e em primeiro plano encontramo-la já com a menina no colo, a vesti-la com a ajuda de S. Joaquim.  Os pormenores da vida quotidiana familiar - o mobiliário, a roupa de cama, os cortinados, os cestinhos com roupa, o chão ladrilhado, as cantarias - são apontamentos realistas muito bem executados que conferem um interesse muito particular a este painel.




Para além dos painéis figurados, a capela foi ornamentada com representações de  colunas e vasos a azul e branco sobre fundo marmoreado a manganês.


Estes painéis de azulejos, com exuberantes  emolduramentos num estilo rococó ou rocaille de recortes e concheados, penso serem atribuíveis a Salvador de Sousa Carvalho, por analogia com dezenas de outros exemplares fotografados que lhe são atribuídos, para além de dois painéis assinados. Foi um mestre pintor de azulejos que, sendo natural de Lisboa, e tendo ali iniciado a sua arte, casou-se em Coimbra com uma neta de outro importante nome da azulejaria coimbrã, Agostinho de Paiva. Ali se distinguiu como pintor de azulejos na segunda metade de setecentos, tendo ainda sido encarregado da condução da Fábrica da Telha da Universidade (1773-1779), fundada com vista  a suprir as obras exigidas pela Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra.

19 comentários:

  1. Confessando o meu desconhecimento e ignorância, saúdo o seu poste, que deu a conhecer estes lindos azulejos.
    Boa noite!

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    1. Bom dia APS!
      Estes lindos painéis de azulejos são apenas uma amostra relativamente modesta do rico património azulejar que devemos valorizar e apreciar em tantos locais do nosso país.
      Ainda bem que gostou. Um abraço

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  2. Maria Andrade que belíssimo post que aqui fez! Encantou-me!
    Isto sim, é algo importante para o estudo da nossa azulejaria.
    Porque mostrar azulejos a esmo, qualquer um faz, e cansa imediatamente o espetador, tendo até um efeito contraproducente nele, podendo mesmo afastá-lo, se o interesse não for instintivo ou derivado de sensibilização artística, ainda que menos conhecedora.

    Quando a informação visual é acompanhada por texto de qualidade, então o conjunto é inestimável, porque não só aumenta o valor da obra como o seu interesse ao nível do património.
    Estes estudos que têm vindo a ser feitos, e têm sido muitos, alguns deles, por ignorância do leigo cidadão, acaba por ficar no meio académico, perdendo-se a última fase do método científico, que trata da divulgação à população em geral, que afinal lhe coube a si em parte.
    Um belo estudo da autora, Diana Gonçalves, a quem, afinal, ficamos todos muito gratos e a si, pela divulgação no seu blog.
    E espanta-me que o estado dos azulejos é, pareceu-me, exemplar!
    Um agradecimento especial
    Manel

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    1. Manel, não imagina o gozo que me tem dado descobrir esta importante produção de azulejaria em Coimbra. É algo de bastante desconhecido ou pouco valorizado mesmo nos meios da História da Arte. Apercebi-me bem disso quando fiz há um ano a visita aos Colégios da Rua da Sofia, com núcleos belíssimos que mal foram mencionados e não identificados como de fabrico coimbrão, apesar de já haver um estudo, também da Diana G. Santos sobre esses colégios, como vim a saber depois.
      Em geral os painéis estão bem preservados, excepto nos casos em que os sítios estiveram abandonados e sujeitos a vandalismo, como aconteceu, por exemplo, no Mosteiro de Salzedas, que a Maria Paul já mostrou no blogue.
      Fico muito satisfeita por ter apreciado o poste.
      Um abraço

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  3. Esqueci-me de mencionar igualmente a interessante divulgação da nossa azulejaria, ainda que numa tónica diferente, mas igualmente importante, feita pela Maria Paula no seu blog "Azulejos portugueses de todas as épocas". Com blogues assim é um prazer vir ler e ver o que se coloca à nossa disposição, pois doutra forma tudo ficaria menos conhecido. Um bom final de semana, que já não vem longe
    Manel

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    1. É verdade, Manel, a Maria Paula tem divulgado exemplares muito interessantes, sobretudo da azulejaria de fachada. E como fotografa muito bem, é um prazer segui-la.

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    2. Já sei que a Maria Andrade não se importa, por isso agradeço aqui ao Manel as referências elogiosas e generosas ao "Azulejos portugueses de todas as épocas".

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  4. Gostei muito Maria.
    São lindíssimos os azulejos. Tenho que visitar esta igreja.
    Beijinho grato pela informação.:))

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    1. Ana, felizmente para além deste núcleo da Anobra, temos muito por onde escolher bem perto de nós. Verá que é assim se abrir o Vol. III da tese de doutoramento aqui referida. O problema é encontrar os locais abertos, mas vale a pena tentar.
      Beijinhos

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  5. Maria A.

    Está de parabéns por esse seu trabalho de investigadora. Quer as fotos, quer o texto elucidam-nos bem sobre a produção coimbrã de azulejos.
    A função utilitária e decorativa dos painéis de azulejos casa bem com a fim a que se destinavam. Foram uma forma económica, embora riquíssima, de ornamentar e também de ensinar. Aprendia-se pela imagem. Por isso o ofício de pintor de azulejos, dado o seu carácter específico, se autonomizou, relativamente ao pintor de louça.
    Um abraço

    if

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    1. Obrigada, Ivete. E desta forma tão simples e económica, a mestria dos pintores de azulejos deixou-nos paredes, felizmente muitas, com decorações de tirar o fôlego! Efetivamente, para os azulejos de figura avulsa, com desenhos muito ingénuos e espontâneos, ou para os de padronagem não seria necessária grande arte de pintor, mas os painéis narrativos já exigiam muita capacidade artística! Eu fico encantada com qualquer deles e neste caso também com os emolduramentos. Salvador de Sousa Carvalho é um nome que merece bem ser conhecido!
      Um abraço

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  6. Maria Andrade

    Realmente desconhecia por inteiro esta produção coimbrã. Por vezes, os nossos manuais de história da arte, parecem que repetem todo a mesma cantilena, há uns anos a esta parte, é o século XVII com os azulejos amarelos, verdes e azuis, o período dos grandes mestres, os azulejos seriados pombalinos, a fábrica do Rato e num pulo já estamos no reinado de D. Maria. E de facto, as igrejas do Sul e Centro estão pejadas de azulejos e terão certamente existido várias oficinas ou manufacturas em Lisboa e em outras cidades do país, que conhecemos mal. As igrejas alentejanas e algarvias estão também pejadas de azulejos e talvez não tenham sido todos manufacturados em lisboa. Aliás, é curioso que esses azulejos marmoreados que mostrou são completamente diferentes dois que se encontram em Lisboa e acredite que os conheço bem pois já apanhei dúzias deles no lixo, fora aqueles que já coloquei na parede em casa do Manel.

    A restante azulejaria é luxuosa e só prova a minha teoria, que qualquer capela ou matriz em Portugal é um pequeno museu de artes decorativas.

    Parabéns pelo seu post. Certamente que haverá gente que irá ver essa igreja depois deste seu post, pois como sabe, hoje em dia, as pessoas preparam os seus passeios culturais e turísticos com recurso a consultas na internet.

    Bjos

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    1. É verdade o que diz, Luís, muitas vezes os livros de estudo não saem das rotas batidas, pretendem assegurar o conhecimento do que está há muito estudado e não arriscam em áreas menos conhecidas. Mas esta produção azulejar coimbrã setecentista, pela dimensão que teve, pela qualidade dos exemplares e até pela importância dos edifícios em que foi aplicada merecia ter sido há mais tempo divulgada para o grande público.
      Estes azulejos marmoreados de Coimbra são agora para mim um auxiliar precioso para identificar esta produção e também as dimensões (cerca de 13 cm de lado, Lisboa cerca de 14 cm).
      Enfim é uma área cheia de interesse e beleza que se pode descobrir e apreciar, como diz, em pequenos museus de artes decorativas que são muitas capelas e igrejas do nosso país.
      Beijos

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    2. Sabe que o nosso amigo Fábio Carvalho anda sempre com uma réguazinha especial na mochila para medir os azulejos?

      Vi-o várias vezes nas ruas de Lisboa a fazer isso e achei-lhe uma graça. Foi ele até que chamou a atenção para a importância da medida dos azulejos, já que as dimensões são um dos factores para ele determinar se os azulejos que encontra no Rio são portugueses, holandeses ou franceses. Claro, O Fábio trabalha basicamente com o século XIX.

      Por cá, em Lisboa, o azulejo mede invariavelmente 14 x 14 nos séculos XVII e XVIII.

      Bjos

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    3. Tem graça, Luís, que quando eu soube dessa diferença nas medidas entre Lisboa e Coimbra também andava com uma bitola para medir azulejos :)) - uma agenda onde tinha marcado na capa os 13cm e os 14cm.
      O Fábio já é veterano nestas coisas, está muito à frente, sobretudo quando se trata de azulejos de fachada. Gostava de o ver mais pelos nossos blogues...
      Beijos

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  7. Azulejaria fabulosa Maria Andrade. Também gostei muito do painel com o Nascimento da Virgem. A representação das cenas do quotidiano fez-me lembrar a pintura flamenga, uma das minhas preferidas.Gosto também da exuberância da representação das nuvens com aqueles enormes novelos no painel da Anunciação.
    Um beijinho e obrigada pela referência generosa ao meu blogue.

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    1. Há realmente núcleos fabulosos, Maria Paula, muito mais elaborados do que este, que para mim já tem um valor extraordinário! E pode muito bem ter havido influência da pintura flamenga nestas representações.
      Apetece ficar muito tempo a admirar os painéis e vai-se sempre descobrindo pormenores encantadores, como esse das nuvens em formas esféricas, tipo novelos, como diz, que aparecem em três deles mas com mais evidência no da Anunciação.
      Não tem nada que agradecer, querida amiga. Beijinhos

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  8. Que coisa linda esses painéis!!! Sem lhe pedir licença, "arrastei" o do Nascimento de Maria, não é comum essa representação e esta é tão real, as coisas da casa...Lindo!

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    1. Fez muito bem em "arrastar", caro Jorge, as coisas boas e belas são mesmo para ser admiradas e divulgadas!
      Um abraço

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