segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Miragaia vs Santo António de Vale da Piedade

Uma das áreas da faiança portuguesa que é alvo de interesse e suscita muitas dúvidas é a faiança azul e branca a que se chama de Miragaia, sobretudo o motivo País e o chamado Cantão popular. Felizmente o catálogo Fábrica de Louça de Miragaia veio lançar alguma luz sobre o assunto, ao demonstrar que muita coisa do género se fabricou noutras unidades cerâmicas do norte do país, mas obviamente não o esgota.
Uma das fábricas concorrentes com produção semelhante, de que se fala muito menos, é a de Santo António de Vale da Piedade e talvez por essa razão, esse nome exerce sempre em mim alguma atração.

Travessa marcada da Fábrica de Miragaia

Fiquei por isso muito satisfeita quando há tempos um seguidor deste blogue me enviou amavelmente fotografias de duas travessas suas do século XIX, com o motivo País - o tal que foi inspirado num motivo da faiança inglesa da Herculaneum Pottery já aqui abordado - ambas marcadas, sendo a primeira de Miragaia e a segunda de Santo António de Vale da Piedade. 


Travessa  da Fábrica de Santo António de Vale da Piedade e respetiva marca

Comparando as duas peças apenas visualmente e a duas dimensões - fatores como o peso e o tipo de pasta também são sempre importantes - percebe-se que o motivo central é muito semelhante nos dois exemplares, mas já na cercadura, flores e folhas apresentam diferenças. Também segundo o amigo possuidor das peças, os azuis são distintos, mais intensos os de Sto António, embora devido à variável incidência de luz nas fotografias, esse dado não seja percetível aqui nem nas imagens de catálogos. Talvez mais percetível é um outro dado também distintivo das duas produções segundo o dono das peças que é o branco "frigorífico" de Miragaia que não se observa em Santo António de Vale da Piedade.

Jarra de altar sem marca
Os azuis muito vivos que decoram esta minha jarra de altar, já aqui partilhada, estarão mais próximos dos de Santo António do que dos de Miragaia,  só que aqui não aparece qualquer marca. Aliás, a  única peça deste tipo que tenho marcada  é um prato de Miragaia, sobre o qual já fiz um post, mas que achei oportuno aqui trazer de novo. Pretendo salientar a semelhança com a primeira travessa, não só no motivo, que é o mesmo, mas na moldagem da orla, bem caraterística da loiça tipo país de Miragaia.

Prato marcado da Fábrica de Miragaia
Para além disso, penso que os tons azuis do meu prato ficaram  razoavelmente fiéis na fotografia aos tons Miragaia que ele apresenta ao vivo, notando-se uma diferença assinalável em relação aos azuis da jarra. Será que é esse tipo de diferença que se observa ao comparar-se ao vivo peças de um e de outro fabrico?
Luis Augusto de Oliveira, grande colecionador de faiança portuguesa de há cem anos, que muito contribuiu para as coleções do Museu de Viana, no seu catálogo "Exposição Retrospetiva de Cerâmica Nacional em Viana do Castelo" refere-se assim aos azuis de Santo António de Vale da Piedade do período de João Araújo Lima, pós Rossi, portanto.

" Em 1844 conseguiu admitir o barrista Francisco de Lima, melhorando em seguida as condições da fabricação, rivalisando então de certa maneira com os productos de Miragaya.
Diligenciou obter a maneira de preparar a melhor tinta de côr azul, que resultou do emprego de cobalto, depois de passar por diversas reacções chimicas, sendo a receita fornecida pelo lente de Chimica da Academia Polytechnica Frei Joaquim de Stª. Clara de Souza Pinto..."


Também do mesmo seguidor é esta travessa, sem marca, segundo ele atribuível a Santo António de Vale da Piedade pelo tipo de cercadura, muito semelhante à de uma peça de lá proveniente.
Eu considero-a uma travessa encantadora, não só pela delicadeza do motivo floral da cercadura, mas também pelo tema central nitidamente inspirado na fábula de La Fontaine "A raposa e o corvo".
Só que aqui os azuis já não parecem tão intensos... 
Enfim, há que concluir que é dificílimo fazer este tipo de comparações por fotografia.

Resta-me agradecer ao seguidor anónimo que nos proporcionou admirar e discorrer sobre  as suas belíssimas peças, disponibilizando também alguma da informação que aqui partilhei.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

Exposição "O CHÁ de oriente para ocidente" - II Exhibition: "TEA from East to West" - II

Capa e contra-capa da brochura da exposição
Vou hoje participar novamente nos eventos do chá com ligação a Tea Cup Tuesday, Tea Time Tuesday e Tuesday Cuppa Tea com mais fotografias da exposição sobre o chá que se encontra no Museu do Oriente em Lisboa.

Retrato de Catarina de Bragança, atelier de Justus Sustermans (1587-1681) 
Desta vez vou-me centrar mais na pintura e mobiliário, mas também na porcelana europeia ali patente. Escolhi começar com um retrato da nossa Catarina de Bragança (1638-1705), a rainha consorte (com pouca sorte, aliás) do rei Carlos II de Inglaterra, cujo nome ficará sempre associado à difusão do chá na corte inglesa, hábito que terá levado da casa real portuguesa.


Porcelana chinesa decorada na Europa, final do século XVIII
É do tempo em que ela reinou em Inglaterra a primeira porcelana decorada na Europa, porcelana que vinha da China decorada a azul sob o vidrado e que, chegada à Holanda, ou também a Londres, recebia decoração sobre o vidrado a vermelho ferro, dourado e por vezes verde, imitando a porcelana Imari decorada na China e no Japão. A este processo de decoração chamou-se "clobbered" como eu já referi num post, a propósito de uma tacinha deste tipo.

O requinte dos móveis vindos do oriente com embutidos de madrepérola
Caixas em charão para guardar o chá, com fechadura!
Em ambientes europeus, a cerimónia de tomar chá a meio da tarde ganhou estatuto social e os serviços para chá estão entre as primeiras peças de porcelana fabricadas na Europa, mas também os de faiança, não faltando os serviços de prata a acompanhar.

Porcelana europeia sobre mesa portuguesa de pau-santo da 2ª metade do século XVIII

Eduardo Viana, Interior, 1914
Bule Wedgwood em biscuit negro ou black basalt (1813-1815) 
Segundo texto do catálogo, este bule faz parte de um serviço comemorativo da batalha de Vitória que marcou o final da Guerra Peninsular, motivada pelas invasões napoleónicas em Portugal e Espanha.

Veloso Salgado, Juventude, 1923
Porcelana da Vista Alegre num modelo usado por toda a Europa no final do século XIX 
Nesta exposição, encontravam-se objetos de diversos materiais, predominando naturalmentemente os materiais cerâmicos. Mas, para além dos serviços em prata,  havia chávenas e pires em tartaruga, em laca policromada e até em palhinha. Houve, no entanto, um material que não consegui ver na exposição: o esmalte.
Por isso, vou aqui acrescentar uma pequena taça e pires no chamado esmalte de Cantão e assim acabar o post com um toque pessoal, esperando que tenham gostado das imagens da exposição que selecionei para hoje.






segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Exposição "O CHÁ de oriente para ocidente" - I - Exhibition: "TEA from East to West" - I

Bule em formato de flor de lótus - família rosa, período Qianlong (1736-1795)
Na minha última ida a Lisboa fazia parte do programa visitar a exposição sobre o chá, patente no Museu Fundação Oriente. As expectativas que levava tiveram resposta à altura, pelo que recomendo vivamente esta exposição a quem a possa visitar até 13 de Janeiro de 2013.
Porque acho que a exposição merece ser divulgada, mesmo além fronteiras, resolvi hoje trazer peças de porcelana chinesa ali expostas para o chá de Tea Cup Tuesday, Tea Time Tuesday e Tuesday Cuppa Tea.
Para além dos painéis informativos e ilustrações que contam a história do chá - começando com as variedades da Camellia sinensis e as classes de chá resultantes do seu processamento - estão em exposição cerca de 250 objetos ligados ao chá, entre porcelanas, pratas, pintura e mobiliário.
Também ali se menciona o papel que teve o porto de Lisboa no século XVI, ao receber esta mercadoria, até então desconhecida na Europa, e ao fazê-la chegar a outros países.

Recipiente em madeira lacada a vermelho para lavar as chávenas de chá e deixá-las a enxugar (China, séc. XIX)
Obviamente que o que aqui vou mostrar só consegue dar uma pequena ideia do que se pode admirar in loco e é claro, tudo filtrado pelo meu gosto pessoal, mas também pela facilidade maior ou menor em conseguir tirar as fotografias.
Optei por mostrar apenas porcelana chinesa, a mãe de todas as porcelanas, sendo a maioria das peças expostas pertença de um colecionador português, Luís M. da Graça.  Admito, no entanto, vir a fazer outro post com porcelana europeia, pintura e mobiliário que fotografei na exposição.

Bules e taças em porcelana branca ou blanc de Chine (China, séc. XIII-séc. XVII)
Bules em porcelana branca decorada a azul cobalto sob o vidrado (China, séc. XVII- XVIII)
Bules em porcelana decorados a imari chinês na fila da frente e com esmaltes da família verde em segundo plano (China, séc. XVII e XVIII)
Porcelana decorada em grisaille (China, séc. XVIII)

 Bules em porcelana decorada a azul soprado, a chocolate ou Batavia e em preto, alguns com reservas de flores (China, séc.  XVIII)


Espero que os apreciadores de chá que me visitam e todos os apreciadores de arte em porcelana se tenham sentido inspirados por esta pequena amostragem do que se pode admirar na exposição do Museu Fundação Oriente.


sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Festejando o S. Martinho


Estamos a aproximar-nos do fim de semana do S. Martinho, altura de provar o vinho novo - ou a jeropiga, que eu prefiro - a acompanhar com castanhas assadas, na companhia de amigos, em casa, nas tabernas ou nos tradicionais magustos.
Ainda se celebra muito nas zonas rurais, ao contrário dos centros urbanos onde, nesta altura, só se lembram de festejar o Hallowe'en (uma tradição muito nossa como o próprio nome indica!!!)


É uma celebração desse tipo que vemos nesta pintura de José Malhoa (1855-1933), apropriadamente intitulada "Festejando o S. Martinho", mas mais conhecida por "Os Bêbados". Vê-se um ambiente sórdido de taberna e, como está à vista e consta da descrição do Museu do Chiado, onde se encontra o quadro, mostra um grupo de aldeões bêbedos, sentados à volta de uma mesa com sardinhas, castanhas e vinho. Crê-se que seja gente de Figueiró dos Vinhos, onde Malhoa construiu casa e  veio a fixar residência, embora fosse natural das Caldas da Rainha.
É um bom exemplo de pintura naturalista, com aquele quadro bem real e cru da natureza humana a servir de objeto de arte. Para além da cena, adivinham-se vidas extremamente difíceis, deles e delas...


Lembrei-me desta pintura já há meses quando recebi da CC as fotos de canecas e picheiras em faiança ratinha, as segundas num formato igual à que figura no quadro. Resolvi por isso guardar estas fotos para esta altura.
Acho engraçado que este "par de jarras" pareça ainda estar toldado pelos vapores alcoólicos que habitualmente guardavam nas entranhas. Reparem como elas estão tremeliques! :)  Com medidas de 21 e 24 cm já levavam razoável quantidade de vinho...


Mas aqui aparecem elas já todas direitinhas, cheias da dignidade da sua função a mostrar as suas belas asas e decoração anexa.
Fazem parte da coleção da CC, que simpaticamente me enviou fotografias das suas picheiras ratinhas com inscrições tecendo loas ao vinho.




Para muita gente, agora como no passado, tinto ou branco, é todo bom!

Eu não me lembro de já ter visto peças destas em faiança ratinha. Com os ambientes que frequentavam e com mãos trémulas a segurá-las, não era fácil contarem com uma vida longa... ;)



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Bule Lusitânia


Como o blogue Moderna Uma Outra Nem Tanto celebra esta semana o seu primeiro aniversário, resolvi oferecer-lhes uma singela "prenda": apresentar aqui este bule Lusitânia, que fez parte de um tête-à-tête em estilo Déco igual ao que o MUONT publicou há meses, embora a decoração seja diferente.

O tête-à-tête  da coleção MUONT

Na altura, em comentário, falei-lhes do meu bule e eles sugeriram que o mostrasse aqui. Achei esta uma boa ocasião.
 Como lhes disse na altura, o conjunto deve ter sido fabricado nos finais dos anos 40,  já que foi prenda de casamento dos meus pais e eles casaram-se logo no início de 1950.


Ainda me lembro de o tabuleiro redondo e as chávenas andarem lá por casa, mas quando vi que só restava o bule, com estas belas linhas Art Déco, resolvi pô-lo a salvo :). As riscas estavam muito em voga nessa época e eu desconfio que a escolha do conjunto com riscas verdes  se deve ao facto de o meu pai ser desde sempre um sofredor do Sporting... ;)


A marca está muito pouco visível, mas consegue-se identificar bem como uma das marcas da Fábrica Lusitânia, da unidade instalada em Coimbra por volta de 1930.
E já agora, um extra para quem gosta de peças Déco e modernistas, como é o caso dos autores do blogue aniversariante: um açucareiro Vista Alegre com a marca de 1947-1968.


Nunca vi outras peças deste formato, mas sendo um açucareiro, haveria as restantes loiças do serviço, a branco ou decoradas.


Que estes amigos AM-JMV celebrem o aniversário do seu blogue  por muitos anos!!!

Por coincidência, na semana seguinte a este post, numa exposição sobre a porcelana Vista Alegre patente no Museu da Chapelaria em S. João da Madeira, fotografei peças de um serviço VA no modelo do meu açucareiro.


Como se pode ver no açucareiro, em termos de formato, só as asas são diferentes.
Penso até que este modelo está em exposição no Museu da Vista Alegre, mas com a diferença nas asas e na decoração, nunca tinha detetado afinidade com a minha peça.

domingo, 4 de novembro de 2012

Frontais de altar do Buçaco



Aqui, bem perto de mim, a dominar toda a Bairrada, há um lugar muito aprazível em qualquer época do ano, onde se passam tardes, dias, bem agradáveis: a Mata do Buçaco!
Ali se concentra um valioso património natural, histórico e artístico, nem sempre devidamente valorizado e acautelado, que vale a pena conhecer.
Data do século XVII (c. 1623) a fixação naquele "deserto" de uma congregação de Carmelitas Descalços, que logo procederam à edificação, não só do seu humilde convento, mas também de fontes, ermidas e capelas, enquanto iam plantando árvores por toda a mata, muitas espécies exóticas, e conservando as autóctones, como o aderno - segundo reza a publicidade, encontra-se ali o maior adernal da Europa.

A entrada do Convento de Santa Cruz do Buçaco
Do pequeno convento, onde Wellington pernoitou antes da Batalha do Buçaco, sobra apenas a igreja, o claustro e algumas celas, já que as restantes dependências foram destruídas no final do século XIX para dar lugar ao Palace Hotel do Buçaco. No entanto, a maioria das restantes  pequenas edificações construídas pelos frades pode-se ainda encontrar se nos perdermos pelos caminhos do recinto murado da Mata, algumas infelizmente pouco cuidadas e até vandalizadas.
Já há muitos anos que não entrava no convento, mas recentemente fui rever os tesouros que  ali se guardam: uma Nossa Senhora do Leite de Josefa de Óbidos e vários frontais de altar do século XVII.



O primeiro frontal que se encontra à entrada do convento está devidamente identificado e datado, com o seguinte texto a encimá-lo: "Frontal do altar da antiga Capela da Encarnação (Bussaco) azulejos de Lisboa cerca 1640"
Apresenta uma ornamentação de motivos entrelaçados, não muito comum no Buçaco, com policromia nos tons de azul e amarelo típicos da azulejaria do século XVII.


Pessoalmente, prefiro os que se encontram nos quatro cantos do claustro, frontais de ramagens  encimados por pinturas representando a cruz com coroa de espinhos e jarras com flores, na verdade pequenos altares em trompe l'oeil.
É notável esta reprodução em pintura azulejar dos riquíssimos panos bordados do oriente, a que não faltavam franjas, cordões e rendas. A influência do oriente é notória nos motivos de vegetação exuberante e aves exóticas enquadrando cartela com as armas da ordem dos Carmelitas.




Saliento aqui os vários "panos" do painel: para além do pano central, vê-se a sanefa com franja e os dois sebastos, as partes laterais, tudo rematado com as cantoneiras de rendas.




Encontrei esta terminologia específica na obra "Azulejaria em Portugal no século XVII" de Santos Simões, uma obra incontornável para quem se interessa por azulejaria antiga e que faz referência a vários destes painéis.


Está já neste estado um painel de pano damascado recuperado de uma das capelas da mata e aplicado num pátio interior do convento. Estando a céu aberto, talvez tenha ficado assim incompleto por ação de intempéries que terão feito cair azulejos. Se o intuito foi preservá-lo, não foi obviamente bem sucedido esse propósito.


E finalmente mostro o painel meu preferido, o mais espetacular, o frontal do altar da pequena igreja do convento. Não só são mais ricos os motivos em amarelo dourado da sanefa e dos sebastos, mas o pano central apresenta uma proliferação de motivos vegetais e animais - aves e insetos nos planos superiores e animais terrestres na base. E novamente as cantoneiras de rendas a rematar o conjunto.
De repente, numa pequena capela anexa à igreja, deparamos com esta pintura de Josefa de Óbidos.


O espaço é exíguo, está repleto de ex-votos maioritariamente em cera, pelo que foi difícil de fotografar. Mas é uma delícia de contemplar, esta Nossa Senhora do Leite, com a presença de S. José, e por isso também chamada uma Sagrada Família.
Voltando aos azulejos, quem sabe se nas dependências do convento que foram destruídas - o refeitório ou a sala do capítulo, que deveria ter - haveria outros frontais de altar do século XVII, que foram postos a salvo?
A verdade é que há frontais deste género no Museu Nacional do Azulejo e um tem  como proveniência "Convento Carmelita, região de Coimbra". Quanto aos do Museu Machado de Castro, são também de um convento carmelita, mas bem identificado, da Vila de Pereira ou Pereira do Campo.

Frontal de altar do Museu Nacional do Azulejo com as armas dos Carmelitas
Um outro património interessante do Buçaco são os revestimentos a embrechados, que se vêem  na fotografia da entrada do convento, mas esse é um tema que poderá ficar para outras núpcias...