quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Faiança figueirense - Carritos e Caceira


Caneca quadrilobada com 20cm de altura e 10cm de largo

Há cerca de dois anos, numa visita que me foi proporcionada às reservas de cerâmica do Museu Municipal Santos Rocha, na Figueira da Foz, reparei neste jarro ou caneca com a nossa conhecida decoração no chamado "Cantão popular" e fiquei muito  intrigada com a ficha junta que a atribuía a Fábrica dos Carritos.
Trata-se de  uma pequena localidade à entrada da Figueira da Foz, junto à estrada de Coimbra, que eu conhecia desde miúda de passagem, nas viagens com destino às férias na Figueira e de regresso a casa. No entanto, nunca tinha ouvido falar da existência de qualquer olaria ou unidade industrial que se dedicasse ao fabrico de faiança por aqueles sítios.


Nunca mais tive oportunidade de confirmar a informação da ficha, mas este ano, o responsável pela cerâmica do Museu Municipal,  pôs-me nas  mãos um documento precioso, intitulado "Retalhos da História da Cerâmica..." um trabalho de estágio realizado no ano letivo de 1976-77 na Escola Preparatória Dr João de Barros, da Figueira da Foz. Ali se transcrevem entrevistas a antigos trabalhadores e a descendentes, alguns já octogenários, dos proprietários de fábricas de cerâmica do concelho da Figueira, tendo sido nessa altura que esta peça de faiança deu  entrada na coleção de cerâmica do Museu Municipal Santos Rocha, por  oferta dos netos do fabricante de Carritos, Sivestre Vaz dos Santos.
O filho deste, com o mesmo nome, nascido em 1900, referiu em entrevista que a fábrica dos Carritos iniciou laboração antes do seu nascimento, mas só se aguentou no fabrico de louça branca até aos tempos da  primeira Grande Guerra, porque faltava o estanho para os vidrados. Deste relato terá resultado a datação da caneca azul e branca com decoração Cantão. A produção nunca terá sido grande já que era o pai que fazia quase tudo, com alguma  ajuda familiar, vindo apenas de vez em quando um pintor de Carvalhais de Lavos pintar a fornada. .
O avô do entrevistado, Manuel Vaz dos Santos, já era  proprietário de uma fábrica de louça branca em Caceira - localidade muito próxima de Carritos - para a qual  mandou vir oleiros de Coimbra no final do século XIX. Com eles, Sivestre Vaz dos Santos pai aprendeu a arte que praticou em Carritos.
A fábrica de Caceira é referida por José Queirós como sendo propriedade de Vaz dos Santos & Pinto, em 1902.
É precisamente desta fábrica o vaso ornamental que se segue, pertencente a um par, e que também faz parte da coleção de cerâmica do Museu Municipal Santos Rocha.
Mais uma surpresa para mim! Quando vi os dois vasos decorados com as armas reais, com aqueles relevos e esponjados, imaginei serem fabrico do Norte e afinal eram produtos de aqui bem perto!

Vaso ornamental de um par fabricado em Caceira

Pormenor interessante das zonas laterais  onde habitualmente se inserem as asas
Mais uma vez fiquei a pensar em como é falível dar palpites sobre a origem da  nossa faiança. Afinal, para além das inúmeras olarias existentes em Coimbra no século XIX e inícios do XX,   houve fábricas ou olarias em várias outras localidades do distrito e só na coleção do Museu Santos Rocha encontram-se peças de mais duas unidades fabris do concelho da Figueira da Foz: uma no  Senhor da Arieira (Tavarede) e outra em  Carvalhais (Lavos).

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

De novo a Fábrica de Santo António


Tenho a sorte de, através do blogue, ir contactando com entusiastas e colecionadores de faiança e, de vez em quando,  receber fotografias de boas peças, como é o caso deste vaso ornamental de arquitetura ou de jardim, com marca da Fábrica de Santo António de Vale da Piedade. Formalmente muito semelhante a um exemplar do acervo do Museu do Açude no Rio de Janeiro, já apresentado pelo LuísY no Velharias graças à colaboração em fotos do nosso amigo Fábio Carvalho, e a um outro exemplar da Ordem da Lapa no Porto, que aqui mostrei, tem a particularidade de revelar em toda a sua beleza o azul intenso de Santo António, complementado pela mancha de amarelo nas duas pegas com cabeças de leão.

Vaso de jardim do acervo do Museu do Açude
Tendo sido uma importante unidade cerâmica de Vila Nova de Gaia, sempre tratada pelos estudiosos destas matérias nas obras que publicaram - Vasco Valente, José Queirós, Artur de Sandão... -  a Fábrica de Santo António não é um nome muito conhecido por cá - talvez seja mais conhecido no Brasil que foi o destino privilegiado destas cerâmicas ornamentais - ou sequer referido pela generalidade dos  vendedores e compradores de faiança. Pelo menos não ao nível de Miragaia, Fervença, Bandeira ou Viana, para só referir fabricos do Norte.
Penso que tal situação só se pode dever a duas razões: o facto de esta fábrica ter marcado muito pouca da sua produção se considerarmos os seus cerca de 150 anos de laboração, ficando por isso muitas peças no anonimato; o facto de alguma da sua produção estar muito na linha do último período da Fábrica de Miragaia, a que esteve ligada por volta dos anos 30 do século XIX e de que parece ter "herdado" operários e materiais, após o fecho em 1855, sendo as duas produções frequentemente confundidas.
E assim ficamos com muitos meninos nos braços, sem saber que nome de família lhes dar, vindo logo à baila o nome de Miragaia, mas com a suspeita de que possam ser desta fábrica gaiense com nome de santo, quer sejam os azuis e brancos do motivo País, quer as várias versões do Cantão Popular ou mesmo faianças policromadas.


É por isso que, sempre que aparecem peças marcadas da Fábrica de Santo António, há um regozijo enorme por parte de quem se interessa pela origem da faiança portuguesa, como é o meu caso e o de seguidores e amigos que por aqui se encontram.


Há cerca de dois anos, precisamente em Agosto de 2011, já aqui mostrei uma terrina igual a esta, com o motivo País, sem marca, em fotos enviadas por uma colecionadora que aqui tem amavelmente partilhado algumas das suas peças. Acabei por a atribuir a Miragaia por ter encontrado na Coleção do Museu de Arte Sacra de Arouca um exemplar idêntico assim marcado. E com base nessa informação, também o MAFLS considerou Miragaiense uma sua terrina deste formato e decoração.
Acontece que...


...como se vê esta tem marca da Fábrica de Santo António... de Vale da Piedade.
Tanto o vaso ornamental como esta terrina pertencem à coleção de um seguidor do Norte que já por várias vezes me cedeu fotografias de peças suas, mais uma generosa partilha que nos permite a visualização de exemplares que de outra forma não estariam acessíveis. Muito lhe agradeço por isso e também pela informação que me tem facultado a acompanhar as fotos.
Segundo Vasco Valente, na sua obra Cerâmica Artística Portuense, as marcas dos dois vasos foram usadas no último período de laboração da fábrica, entre 1887 e a data de encerramento, cerca de 1930, durante a gerência de António José da Silva e Silva. Mas já José Queirós em Cerâmica Portuguesa e outros estudos fá-las recuar no tempo, datando marca semelhante (apenas diferindo nas palavras "fábrica de" escritas por extenso) e também a marca tipo Miragaia com os ramos de louro, dos anos 40 do século XIX, ou seja, do que é já considerado o 2º período de fabrico. Por outro lado, a marca da terrina não está referenciada por qualquer dos autores citados acima, pelo que, sendo seguramente do período posterior a Rossi, o fundador da fábrica e seu proprietário, ele e depois a filha, entre 1785 e os anos 1830, incluindo o período dos arrendatários Rocha Soares, fico na dúvida se a terrina será do segundo período se do terceiro e último.

A marca com ramos de louro datada por José Queirós de 1840 e por Vasco Valente do último período de fabrico

Estas considerações e dúvidas podem parecer coca-bichices, pormenores sem importância, mas eu, com as minhas manias já bem conhecidas por aqui ;), considero-as relevantes para o conhecimento da história das peças e da produção da fábrica.
Deixo para o fim a que considero a vedeta de hoje:


Também do mesmo colecionador é este escorredor de copos ou salva de aguardente, só que... sem marca. Foi no entanto comprada como fabrico de Santo António de Vale da Piedade, a intensidade do azul aponta nesse sentido, mas também a tipologia parece fundamentar a atribuição. É que conhece-se pelo menos um escorredor de copos deste formato atribuído por um especialista a Santo António de Vale da Piedade. A decoração é também a azul, mas marmoreada e pode ser vista no 2º volume da obra Faiança Portuguesa de Arthur de Sandão, p.154.


Aqui as duas peças, base e salva, bem visíveis e no seu esplendor máximo com a ingénua decoração de pássaro e ramos.
Devo confessar que este post saiu quase a ferros!!! Com a azáfama familiar que tem andado à minha volta, e ainda bem, só hoje arranjei umas horitas para alinhavar  a escrita... enquanto a malta foi até à praia ... :)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os "Mil e um Mistérios" de Castilho




Admito que possa haver mistérios na vida pessoal ou literária de António Feliciano de Castilho(1800-1875), mas aqui refiro-me ao título do único romance que lhe é conhecido, Mil e um Mistérios, a que ele, talvez ironicamente, deu o sub-título de Romance dos Romances, mas que deixou inacabado.
Sempre interessada por assuntos da história local, descobri-o há anos na minha biblioteca escolar, não só esta edição da Câmara Municipal de Águeda, que assinalou os anos de permanência do escritor na freguesia de Castanheira do Vouga durante as Guerras Liberais, mas também a edição de 1907 de que falarei adiante.
É um romance bairradino, já que a ação se passa na Bairrada, o que não surpreende quem saiba que Castilho  tinha familiares na Bairrada e aqui passou longas temporadas.

Edição da Câmara Municipal de Águeda

A história do romance centra-se em Aguim, aldeia muito antiga do concelho de Anadia, onde o escritor tinha as suas raízes do lado paterno (já agora, também o escultor Machado de Castro ali tinha ligações familiares) e encontram-se no romance referências a muitas outras localidades bairradinas - Águeda, Luso, Mogofores, Mealhada, Peneireiro, Tamengos (a freguesia a que pertence a estância termal da Curia) - e à Mata do Buçaco,  servindo de cenário para uma evocação da vida na Bairrada a meados do século XIX.

Os trinta capítulos desta obra foram publicados por Castilho em 1845, mas a história ainda estaria longe do seu desfecho e, estranhamente, apesar de ainda ter vivido mais 30 anos, não se lhe conhece a publicação de mais uma linha sequer de Mil e Um Mistérios. Foi já postumamente, na edição de 1907, que saiu a lume um acrescento, ainda sem conclusão, que tinha ficado em forma de manuscrito à guarda do seu secretário - não nos podemos esquecer que o escritor ficara cego ou quase cego na infância (talvez agora lhe chamássemos amblíope?) e tinha que ditar todos os seus escritos.

Os dois volumes da edição de 1907
A obra, com os trinta capítulos e o acrescento intitulado O Frade, surgiu com os números 52 e 53 na edição das Obras Completas de António Feliciano de Castilho, por iniciativa do filho Júlio de Castilho.
É um romance de aldeia que se pode considerar precursor do romance campesino, um tipo de romance cuja criação é atribuída a Júlio Dinis, duas décadas mais tarde. No entanto, com a ação localizada num ambiente de aldeia bairradina, temos a mestria de Castilho a levar-nos constantemente, mas sempre a propósito da narrativa, para personagens e autores das literaturas europeias suas contemporâneas ou para figuras e mitos das civilizações clássicas, em referências e comparações cheias de ironia e de humor.
Penso que é uma obra difícil de enquadrar em qualquer corrente literária. Ali encontramos, desde episódios picarescos cheios de comicidade,  a descrições pormenorizadas dos falares, trajes e  costumes aldeãos, caraterísticas do realismo então incipiente, referências  a figuras da mitologia clássica, próprias do arcadismo em que o autor se formou, passando por personagens de índole romântica, cujas ações e atitudes são influenciadas por leituras de obras bem populares do romantismo.

Um dos meus exemplares, edição de 1938

 Na tripla dedicatória do romance deparamos com mistérios a acrescentar aos outros mil e um do enredo: porquê dedicar a obra aos leitores do ano 1900 e a quatro escritores portugueses contemporâneos que Castilho não identifica, adivinhando-se que o faz com a mesma ironia com que a dedica a todas as boas mulheres. Escritores já consagrados à época, 1845, eram Alexandre Herculano e Almeida Garrett, da primeira leva de românticos, mas quem seriam os outros dois?


No trigésimo capítulo, intitulado o ermo, o cenário é o chamado Deserto do Buçaco onde se instalou uma comunidade de Carmelitas Descalços no século XVII. Faz uma descrição fabulosa da mata plantada e cuidada pelos carmelitas durante dois séculos, então já de lá ausentes há doze anos, segundo nos diz o próprio narrador. 
E é com o protagonista, João Simões, a deambular pela mata e a ter um misterioso sinal de presença humana, que termina esta parte da obra em capítulos. Tal desfecho terá permitido associar-lhe o manuscrito  "O Frade", acrescentado ao romance em 1907.



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Casa-Museu Egas Moniz em Avanca



Fachada lateral da casa

Referi aqui, a propósito da visita à Casa-Museu Júlio Dinis em Ovar, que no mesmo dia, o Dia Internacional dos Museus, e com o mesmo grupo, também visitámos a Casa-Museu Egas Moniz, em Avanca. Já lá vão mais de dois meses, mas como prometi na altura, e o prometido é devido :) aqui está a bela moradia de Egas Moniz (1874-1955).

A fachada principal
Ali  fomos recebidos pela  diretora deste espaço, um edifício que Egas Moniz reconstruiu em 1915 na sua terra natal, a partir da chamada Casa do Marinheiro, segundo projeto do arquiteto Ernesto Korrodi. A casa foi destinada a férias em família e recheada de coleções reunidas pelo casal e de objetos pessoais e profissionais do nosso Nobel da Medicina (1949). A diretora da casa-museu, na zona de receção e loja, fez uma breve apresentação da casa e da obra científica de Egas Moniz, guiando-nos seguidamente pelas diversas salas e núcleos expositivos.

Uma sala logo à entrada com lustre de cristal e várias jarras de cinco dedos em faiança
Recanto da biblioteca
Seriam pessoas com gostos ecléticos que colecionavam em diversas áreas, mas das várias coleções, como seria de esperar, as que mais me prenderam  a atenção - e já não era a primeira vez que as via - foram as porcelanas e faianças, desde o serviço de jantar em porcelana chinesa azul e branca até à faiança portuguesa esmaltada, loiças Wedgwood e porcelanas da Vista Alegre que se encontram pelas várias divisões mobiladas à época.

Faiança de Viana sobre uma lareira


Porcelana chinesa Cª das Índias numa outra sala


Galheteiros!!! e terrinas de porcelana chinesa num móvel da sala de jantar...
...e pratos e travessas de faiança portuguesa no cimo do móvel















Louças Wedgwood creamware no átrio do 1º andar























Mas há uma zona da casa em que as coleções estão musealizadas por salas específicas, de pintura, de prataria, de porcelana e cristais e também há salas dedicadas à obra científica de Egas Moniz.
Espero ter aqui aberto o apetite a quem aprecia casas antigas e recheio condizente para que programem uma visita  a Avanca, junto a Estarreja - para os que não conheçam bem esta zona, fica um pouco a norte de Aveiro.

Egas Moniz em retrato a óleo da autoria de Henrique Medina
Só mais duas notas sobre a obra do retratado:
. Foi-nos referido pela diretora do museu, que foi a sua descoberta da técnica cirúrgica da leucotomia pré-frontal, ou seja, uma cirurgia ao cérebro para tratamento de doenças neurológicas, que o levou a ser agraciado com o Prémio Nobel da Medicina. Pois esse prémio tem sido injustamente posto em causa por instâncias médicas internacionais por confundirem a prática de Egas Moniz, totalmente inovadora à época e eficaz no tratamento de certos casos, com a de médicos cirurgiões americanos que na mesma altura aplicaram em larga escala uma técnica semelhante conhecida por lobotomia frontal, esta sim com consequências terríveis para  muitos doentes. Há que pôr os pontos nos ii, não?
. A tese de doutoramento de  Egas Moniz, pouco conhecida do grande público, foi a "A Vida Sexual" ( obra com reedição à venda na loja desta Casa-Museu) devidamente ilustrada com partes anatómicas, como tinha que ser. Pois durante o Estado Novo, só podia ser comprada com receita médica :) e os estudantes de Medicina só a podiam consultar nas bibliotecas universitárias com autorização expressa do respetivo professor. LOL