domingo, 29 de setembro de 2013

Jarra de dedos com marca (quase) desconhecida...

As jarras digitadas ou floreiras de três, quatro, cinco dedos, estão no meu imaginário desde criança. Desenhava-as muitas vezes nos meus quadros a lápis de cor, com flores muito atabalhoadas, já que a habilidade para o desenho nunca por cá morou muito...
Talvez por isso, sempre quis ter uma, antiga, com aqueles dígitos cheios de escamas em relevo, de que se encontram alguns exemplares nas coleções do MatrizNet. Só que, até há pouco tempo, ainda não me tinha cruzado com nenhuma que achasse apetecível. ;)


Esta chamou-me a atenção num antiquário de Coimbra onde gosto de entrar de vez em quando. Ao ver de perto, percebi que não estava nada bem tratada, com um dos dedos partido e colado, mas o preço marcado não era propriamente hostil e ainda baixou para uma dezena de euros, após pequena negociação. Via-se que era para despachar o "traste"!
Notei, ainda na loja, que a etiqueta com o preço estava colada sobre um marca na base, incisa na pasta.  Tal facto aguçou-me logo a curiosidade e deixou-me a pensar se teria havido intenção de esconder a marca, talvez estrangeira e não em faiança portuguesa antiga, como levaria a pensar o formato da jarra de três dedos.


Ao chegar a casa, procurei decifrar a marca com uma lupa, mas não foi fácil perceber quais as iniciais que lá estavam. Por cima delas também não era muito clara a figura, mas parecia uma coroa. Resolvi fotografá-la para a conseguir ampliar no computador e percebi então tratar-se das iniciais RF efetivamente sob uma coroa. Seria Real Fábrica? Ou Royal Factory? Ao percorrer as listas de marcas portuguesas - nas obras de José Queirós e de Arthur de Sandão - vi que não era marca que ali constasse e então  convenci-me que seria inglesa. 



A pasta parecia-me creamware, muito mais fina e bem acabada do que a das floreiras portuguesas que eu tenho visto. O próprio formato tem pormenores requintados como fitas e laços bem moldados. O problema é que por mais que procurasse no meu livro inglês de marcas e em sites da Internet, o RF com a coroa não se dignava aparecer.
Na semana passada, estive com um especialista em cerâmica do Museu Machado de Castro e lembrei-me de lhe mostrar a marca, que tinha no cartão da máquina. Disse-me ele  logo: "Isso é Rato!" E eu incrédula: "Rato? Mas eu nunca vi marcas da Fábrica do Rato com coroa e gravadas na pasta!"

As marcas da Fábrica do Rato em Arthur de Sandão

Bem, resumindo e encurtando, ele pôs-me nas mãos o catálogo Real Fábrica de Louça ao Rato, Lisboa MNA/IPM, 2003 para eu folhear e, ao fim de um bom bocado, lá estava a marca, fotografada numa caneca cabeça de preta da coleção Hipólito Raposo, do último período de produção da fábrica (1818-1834).

Caneca do Museu Nacional Soares dos Reis atribuída à Fábrica do Rato
Segundo o especialista Alexandre Pais, estas marcas a punção terão sido usadas a partir da administração de Alexandre Vandelli (de 1818 a 1824) em faiança de pó de pedra, a grande novidade à maneira inglesa do stoneware, que foi introduzida na altura. Assim, depreendo que a pasta desta minha jarra seja pó de pedra, aos meus olhos leigos facilmente confundível com o creamware inglês.
Imaginem a emoção! Sim, porque não é todos os dias que se encontra uma peça marcada da Real Fábrica de Louça, um tanto escaqueirada, é certo, mas a revelar a qualidade e sofisticação daquele fabrico, iniciado em 1767 por ordem do Marquês de Pombal!

domingo, 22 de setembro de 2013

Dia de aniversário...e já lá vão três anos!!!

É verdade, faz hoje três anos que o Arte, Livros e Velharias entrou no ar!!! Pergunto-me muitas vezes até quando "lá" ficará, mesmo depois de eu deixar de fazer novas entradas, mas enquanto o Google existir....
Ao contrário dos dois primeiros anos de blogue, 2013 não tem sido fértil em postes sobre azulejos. Para me redimir um pouco dessa falta, quis assinalar este 3º aniversário, não com retrospetivas e números ou com um chá ao domingo :) mas com um conjunto de peças muito especiais:  azulejos hispano-árabes ou mudéjares.


Foram comprados em várias feiras da minha zona, um pouco hesitantemente de início, sempre à mesma vendedora, querendo saber qual teria sido a sua proveniência. Segundo ela, tinham pertencido a um arquiteto que os tinha aplicado em painéis de parede e que, por algum motivo decidiu desfazer-se de alguns...


Os verdes intensos que me encantam, tanto aqui como na faiança ratinha

Isto foi na altura em que abriu ao público, após a longa intervenção de restauro e consolidação da ruína, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, e eu, durante a primeira visita que ali fiz, reparei que as suas vetustas paredes de pedra nua estavam pontuadas aqui e ali  por pequenos conjuntos de azulejos hispano-árabes. Também os claustros e outros espaços do convento, agora ao ar livre, mostravam o que restava dos belos revestimentos azulejares de outrora. 

Mosteiro de Santa Clara-a-Velha - foto da Wikipédia

Questionei o guia sobre a razão de tamanha falta de revestimento, respondendo-me ele que o museu anexo dispunha nas suas reservas de milhares de azulejos dali provenientes, com mais de 100 padrões diferentes, não estando prevista a sua recolocação nas paredes.
A verdade é que conhecendo-se a história deste mosteiro, durante séculos sujeito à cíclica invasão das águas do Mondego, entrando ali todo o tipo de destroços arrastados pelas cheias, imagino eu que muitos azulejos se tenham soltado e até, arrastados rio abaixo, se tenham depositado no fundo e nas margens. Mais tarde, com a contenção do leito do rio mas com o convento ao abandono - parece que chegou a servir de curral - mais uma grande parte deste revestimemto deve ter sido arrancada e danificada. Provavelmente e ainda bem, algum terá sido acautelado em coleções particulares.

Pequenos núcleos de azulejos hispano-árabes no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha
Mas há em Coimbra um outro monumento multi-secular do qual saíram milhares de azulejos quinhentistas, que "se soltaram" das paredes há pouco mais de 100 anos.
Refiro-me à Sé Velha, que no século XVI, graças ao gosto renascentista do bispo-conde D. Jorge de Almeida, à frente da diocese entre 1483 e 1543, foi revestida, nos pilares das naves e  paredes laterais, a azulejos sevilhanos decorados por técnica de aresta. 
Interior da Sé Velha de Coimbra (foto de Vitor Ribeiro no Flickr)
Tento imaginar o que seria este espaço imponente revestido por aqueles quadradinhos de brilhante colorido em diversos padrões, geométricos e renascentistas. Para mim seria um deslumbramento!
Infelizmente, penso eu, tal não foi considerado pela comissão que superintendeu às obras de restauro da Sé em finais do séc. XIX, de que faziam parte António de Vasconcelos e António Augusto Gonçalves, para além do bispo da altura, grande impulsionador das obras. Ao pretenderem devolver àquele templo o seu aspeto original, no despojado estilo românico do séc. XII, entenderam mandar retirar os azulejos mudéjares. Vá lá que decidiram preservar e restaurar a Porta Especiosa, obra renascentista de João de Ruão, e também manter e restaurar o magnífico retábulo do altar-mor em gótico flamejante! Terão sido os entalhadores flamengos deste retábulo, Olivier de Gand e Jean d'Ypres, quem se encarregou da encomenda dos azulejos em Sevilha.

Azulejos hispano-árabes bem preservados no Convento da Conceição em Beja

O que é certo é que a remoção dos azulejos foi feita gradualmente, a maior parte das peças entregues ao Museu do Instituto, hoje Museu Nacional Machado de Castro, tendo algumas sido integradas noutros museus nacionais, como o Museu de Lamego, que a isso faz referência. Julgo que muitos azulejos se terão dispersado durante as obras e durante o período de décadas em que estiveram amontoados em dependências da Sé Velha. Na Alta de Coimbra eles têm aparecido em casas particulares, em frisos a embelezar lareiras, por exemplo, e até conheço uma casa antiga em localidade próxima que tem pequenos painéis aplicados no exterior. Alguns poderão até ter desaparecido nas demolições da Alta dos anos 40...
 Hoje, na Sé,  restam dois ou três panos de parede ainda revestidos, o que, apesar de tudo, me dá alguma consolação e permite ter um ideia do que lá se encontrava.

Em dia de aniversário não podia deixar de agradecer a todos os amigos e seguidores que têm tido a paciência de ler estes escritos assim ao correr da pena, por vezes um pouco longos, sobretudo aos que vão deixando os seus comentários, o feedback sem o qual isto não teria piada nenhuma. :) E há aquele núcleo duro de amigos, administradores de outros blogues e comentadores assíduos, que me fazem continuar, mesmo quando o tempo e a inspiração escasseiam. Sem eles, isto não só não teria piada nenhuma, como certamente não teria chegado até aqui...
Beijos e abraços a todos.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Pequeno mostruário da Vista Alegre - Small Vista Alegre showcase


Regresso hoje às celebrações do chá com Tea Cup Tuesday - Terri e Martha - e Tea Time Tuesday mas...
Today I'm back  to tea time celebrations with Tea Cup Tuesday - Terri and Martha - and Tea Time Tesday but...


Com o tempo quente em Portugal a prolongar-se por Setembro, a opção por bebidas quentes, como o chá, é geralmente abandonada a favor de líquidos mais refrescantes. No entanto, o meu cafézinho nunca dispenso, duas ou três vezes ao dia, e como se vê pela amostra junta, posso variar na escolha da chávena para o saborear.
With the hot weather in Portugal  continuing through September, opting for hot beverages such as tea, is often abandoned in favor of cooler drinks. However, I can't do without my little coffee two or three times a day, and as shown by the sample above, I can vary the choice of the cup to sip it. 

Três motivos diferentes para o mesmo formato
A verdade é que já tenho usado estas chávenas da Vista Alegre, do mesmo formato mas com motivos diferentes,  para servir café à família ou aos amigos. É uma opção alegre e descontraída que dá até para usar chávena e pires diferentes, sempre que haja peças desirmanadas, como é aqui o caso de algumas. Além disso pode-se ir sempre acrescentando com outros motivos, no mesmo formato ou até misturando formatos diferentes, como vi recentemente em casa de amigos.
The truth is that I have already used these cups by Vista Alegre, in the same shape but with different patterns, to serve coffee to family or friends. It is a cheerful and relaxed option that you can even use different cup and saucer, whenever there are unmatched items, as is the case of  some of these. Also you can always keep adding other patterns, in the same shape or even mixing different shapes, as I've seen recently at a friends'home.

O motivo Campestre

Motivo do tipo Cozinha Velha

Motivo Margão com pintura à mão

Motivo com vista da Quinta da Vista Alegre
Eu limitei-me a dar uso às ofertas de chávenas isoladas que por vezes recebi de presente e às compras de chávenas isoladas que fiz por algum motivo, por vezes até por encontrar verdadeiras pechinchas nas feiras de velharias, tratando-se de porcelana desta qualidade.
What I did was just give a good  use to solitary cups that I've been offered and to purchases of  isolated cups I did for some reason, sometimes for finding real bargains at flea markets, considering it's porcelain of this quality.


As marcas são todas do último quartel do século XX, sendo a de baixo do lado direito, tanto quanto eu sei,  ainda usada atualmente.
The backstamps are all from the last quarter of the twentieth century and the one on the second row right, as far as I know, is still used today.
Mas tratando-se de um regresso às celebrações do chá, não podia deixar de aqui acrescentar um outro exemplar da Vista Alegre, desta vez para o chá, com uma marca curiosa.
But in a return to tea celebrations, I couldn't but add here another set by Vista Alegre, this time for tea, with a curious marking.



Aparecem casos destes de dupla marcação - Vista Alegre e Sociedade de Porcelanas de Coimbra - este com a marca azul que a Vista Alegre usou de 1968 a 1971 carimbada em peças que já tinham sob o vidrado o carimbo da Sociedade de Porcelanas, adquirida pela Vista Alegre nos anos 1940. Sobre este assunto o MAFLS tem um post recente, com outra marca da VA assim sobreposta à SP, que merece uma visita.
There are cases like this of double stamping - Vista Alegre and Coimbra Porcelain Partnership - this one with the blue backstamp that Vista Alegre used from 1968 to 1971 marked on pieces that already bore the underglaze backstamp of Coimbra Porcelains - a firm bought by Vista Alegre in the 1940s.
On this subject,  MAFLS has a recent post that deserves a visit, showing another backstamp of VA thus added to the Coimbra SP mark.


Espero que tenham gostado deste chá... com chávenas  de café :) em porcelanas VA.
Hope you enjoyed this tea... with coffee cups :) in VA china.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Finalmente!!! o "Thesouro de Prudentes" restaurado!


Falei aqui pela primeira vez neste livro há mais de dois anos, quando me dispus a restaurá-lo e a completá-lo na Oficina de Conservação e Restauro de Livros da Rua da Alegria em Coimbra, que nessa altura comecei a frequentar.
Thesouro de Prudentes de Gaspar Cardoso Sequeira é uma obra importante, quer pelo conteúdo, quer pelo autor, que foi um cosmógrafo e matemático português do século XVII, natural de Murça em Trás-os-Montes, sendo Thesouro de Prudentes (Lisboa, 1612) o seu segundo livro publicado.
A obra compõe-se de quatro livros, divididos em vários tratados sobre Astrologia, Medicina, Aritmética, Geometria, Ilusionismo (tratado III, livro III). Segundo informação da Wikipédia, é o quarto livro alguma vez escrito que descreve truques de ilusionismo e o primeiro a explicar como é que são feitos esses truques.



Encontrei-o na Feira da Ladra num estado deplorável, como se pode ver nas fotos que se seguem,  faltando-lhe mais de 100 páginas. Mas tratando-se de uma obra importante do nosso século XVII, e neste caso uma edição de 1701, achei que valia a pena trazê-la comigo.
Esta obra teve várias reedições ao longo dos séculos XVII e XVIII, em Coimbra e em Lisboa, sendo esta de Lisboa, da Oficina de Manuel Lopes Ferreira. A última que conheço é também de Lisboa, de 1712, do editor Miguel Manescal.


A capa é em pergaminho numa encadernação típica da época, não tem cartão a reforçá-la nem tinha guardas, elementos que não seriam usados neste tipo de encadernação, chamada de solapa.





O livro começou por ser todo desmanchado, a capa limpa e as folhas lavadas, uma operação morosa e delicada, seguindo-se o restauro das folhas rasgadas, com papel japonês. Ficou então a aguardar o completamento dos cadernos através da digitalização das páginas e folhas em falta a partir de um exemplar completo. Depois de uma primeira digitalização que correu mal e que deixou o trabalho parado durante um ano, quase me levando a desistir de o completar, tive acesso através da Oficina de Restauro a um outro exemplar e então foi possível retomar o processo.

Cadernos já restaurados

Costura dos cadernos por processo antigo

Transfil manual

Junção da capa aos cadernos já cosidos
É uma obra muito interessante também pelas ilustrações, só que, como é habitual acontecer, eram sobretudo as páginas ilustradas que estavam em falta.



Um dos muitos ornatos de fim de página
Deu muito trabalho e não ficou propriamente barato este meu Thesouro de Prudentes, mas é mesmo um tesouro de interesse bibliográfico!