segunda-feira, 23 de março de 2015

Um prato inglês e seus sucedâneos em faiança portuguesa

ou seja, sucedâneos de sucedâneos...


Este é um prato de faiança inglesa, com um atraente motivo oriental num flow blue muito ténue, talvez acidental, saído da fábrica de John Meir & Son a meados do séc. XIX. Trata-se de um fabricante sobejamente conhecido por cá, que ainda só John Meir estabeleceu a sua atividade cerâmica em Tunstall, Staffordshire, e aí laborou entre 1812 e 1836.
Eu já conhecia o motivo e já tinha visto pratos destes à venda, mas não a preços que me convidassem a trazer mais um azul e branco para casa. Desta vez, já lá vão uns meses, os deuses foram-me favoráveis...
Na marca consta o nome do motivo, Kirkee, e eu, iludida pela semelhança com os motivos da porcelana chinesa azul e branca, logo pensei ser o nome inglesado de alguma localidade ou região chinesa, como é o caso dos motivos Cantão.

A marca, com o efeito flow blue (ou azul escorrido ou borrão) a notar-se 

Puro engano. Ao pesquisar  o nome no Google, logo descobri tratar-se de uma cidade indiana perto de Pune, no estado de Maharashtra, e até longe do mar, ao contrário do que sugeria a gravura.
Foi uma cidade com relevância para os ingleses, no tempo em que dominaram grande parte do subcontinente indiano, daí ter merecido ser lembrada na sua produção cerâmica do séc. XIX, mesmo sem ter sido representada com qualquer fidelidade ao local. Com efeito, segundo a Wikipédia, foi lá que a Companhia Inglesa das Índias Orientais foi atacada e venceu os Marajás na que ficou conhecida como Batalha de Khadki (em inglês Kirkee), em 1817.


O prato Kirkee foi entretanto destronar outro no meu escaparate de faiança inglesa azul e branca e estava mesmo no meu ângulo de visão quando nos dias mais frios deste inverno me sentava junto ao fogão de lenha. Um dia reparei que aquele motivo era déjà vu. Sim, aquela baía do motivo central, com as formas vegetalistas  à beira da água, o edifício oriental mas com uma cruz no topo, o chorão, a vedação, eram-me familiares.


Fez-se luz! Era nada mais nada menos que o motivo central de uma tosca travessa de faiança que já aqui mostrei e cujos pormenores decorativos me intrigaram sempre.


Não percebia o que era aquele amontoado de pedregulhos a fazer curva, nem entendia o que eram aquelas quatro colunas, tipo lampião ou arco e balão das marchas populares... Finalmente foi desfeito o mistério.
Os elementos estão lá todos. Foi certamente desenho à vista feito a partir de um prato ou travessa do serviço de jantar Kirkee que terá chegado a uma casa abastada do Porto ou de Gaia, na época em que a comunidade inglesa do Porto era forte e as trocas comerciais com Inglaterra muitas e frequentes.


Só o desenho da cercadura se afastou do original, se é que podemos chamar original a um motivo claramente influenciado pela porcelana chinesa azul e branca - sim, vai tudo sempre ter à porcelana chinesa e depois encontramos sucedâneos de sucedâneos, numa cadeia que se estende até quase aos nossos dias.
Mais curioso ainda foi ter encontrado entretanto, no blogue "Velharias, tralhas e traquitanas" uma travessa de faiança portuguesa com uma decoração ainda mais fiel ao padrão Kirkee.


Neste caso até a cercadura procura reproduzir a barra, tipicamente chinesa, que delimita o covo do prato inglês, repetida em menor escala no recorte da respetiva aba, não faltando as reservas com os motivos florais nesta versão portuguesa.
É mais um dos muitos motivos da nossa faiança cuja filiação podemos reconhecer na faiança inglesa de pó de pedra, alguns com raizes orientais mais remotas - o motivo País de Miragaia vindo da Herculaneum Pottery, o Cantão Popular com raizes no Willow, os Chalés alpinos (Vilar de Mouros e outros) que reproduzem o Roselle, os nossos motivos Cavalinho ou Estátua com origem na Grecian Statue... E até julgo ter um Templo do Céu em faiança portuguesa que os ingleses também fabricaram! Mas esse fica para outro dia... ;)

terça-feira, 17 de março de 2015

Um chá por S. Patrício - A tea for St. Patrick


Comemora-se hoje, sobretudo no mundo anglófono, o Dia de S. Patrício ou St. Patrick's Day, um dos padroeiros da Irlanda, certamente o mais popular e o mais venerado.
Por isso, resolvi juntar-me às minhas companheiras do lado de lá do Atlântico, as anfitriãs e participantes nos chás de terça-feira - a Sandi, a Martha e a Ruth - que sempre celebram esta data. Além disso, fez precisamente há uma semana 4 anos que pela primeira vez aderi a estes eventos semanais à volta do chá, facto que também quero hoje aqui assinalar.


É o trevo e a cor verde que predominam nestas celebrações, razão pela qual juntei às peças em porcelana verde e prata da Vista Alegre umas delicadas peças Belleek, a conhecida e prestigiada marca de porcelana irlandesa, decoradas com o típico shamrock.



Este pratinho,com uma marca recente da fábrica de Fermanagh trouxe-o como recordação de uma viagem à Irlanda, a única até hoje, mas que gostaria muito de repetir...



A tacinha tem uma marca mais recuada (1926-1946) e é de qualidade superior, numa porcelana mais fina e com uma iridescência dourada a cobrir todo o interior.
As peças do serviço de chá da Vista Alegre são ainda mais antigas, com marcas da chamada "cegonha", que afinal é uma ema ;) datando-as do período 1881-1921.


          As marcas das peças da Vista Alegre

Como não tenho chávenas de chá com decoração de trevos, fui buscar esta tacinha e respetivo pires com uma flor verde que os lembra vagamente, pelo menos parece ter ao centro um trevo ;).



 Deve ser muito antiga, tem um filete dourado ao centro já bastante gasto e não apresenta qualquer marca, nem sequer números de padrão, apenas um 4 e uns riscos incisos, por isso, ao contrário da maioria das minhas tacinhas de chá, não me parece que seja inglesa, mas será com certeza europeia, talvez francesa ou mesmo portuguesa da Vista Alegre.
E já que temos hoje como tema a cor verde, que tal um chá verde para fazer bem e umas amendoas de chocolate para estragar um bocadinho? ;)


Resta-me desejar a todos um bom Dia de S. Patrício, estejam ou não em local de festa e celebrações.

A celebrar com:
Tea Time Tuesday, Tea Cup Tuesday e Tuesday Cuppa Tea




segunda-feira, 9 de março de 2015

Uma herança muito especial


Antes não a tivesse recebido tão cedo...
Falo dos livros do meu pai, em particular dos que ele próprio encadernou, de que se podem ver alguns neste móvel.
Se há objetos que desde sempre associei ao meu pai e que ele desde miúda me incentivou a usar, a estimar, a valorizar, esses objetos são os livros, objetos especiais que podem contar histórias e que podem conter mundos, como ele cedo me fez perceber.


Aprendeu a encadernar ainda novo, em casa de uma familiar em Lisboa, mas nessa altura deve ter encadernado "O Mosquito" de que já aqui falei, o "Manual do Encadernador" de Maria Barjona de Freitas, uma obra imprescindível para esta arte, e pouco mais.



 Foi décadas mais tarde, quando esteve colocado em Santarém, nos anos 70, que se dedicou mesmo à encadernação de uma boa parte dos seus livros, talvez por ter uma oficina de encadernador bem perto do local de trabalho. Era ali que comprava os materiais e  ali ia finalizar os trabalhos com a aplicação de ouro nas lombadas, a ferros quentes. Depois revia-se na obra feita e partilhava comigo a satisfação de colocar na estante mais um livro assim consolidado e embelezado.

Uma da minhas capas preferidas
O requife e a fita de marcar
Encadernou sobretudo romances - os seus Eças, Aquilinos, Jorge Amados, Zolas, Dickens, Tolstois... - mas também poesia, o teatro de Gil Vicente e revistas que assinava regularmente, salientando-se a Seara Nova de 1964 a 1971.

Quatro volumes da revista Seara Nova

Foi quase uma centena de volumes que ele encadernou nas horas vagas, sobretudo nos longos serões de inverno. Rodeava-se de ferramentas, peles, papéis, pequenos utensílios, fios, fitas, requifes, etc. e lá ia fazendo o trabalho com toda a paciência e desvelo.

A prensa de madeira e alguns materiais que depois me passou para encadernação e restauro
Encadernava em meia de pele, nas cores mais variadas como se pode ver na segunda fotografia, sendo as minhas preferidas as de carneira em tom natural, que depois vai escurecendo, com aplicação de rótulos coloridos.

Alguns clássicos encadernados
De início, eliminava as capas moles originais, mas mais tarde passou a mantê-las e também as bandas laterais, como deve ser feito. Neste Léah e outras histórias de José Rodrigues Miguéis colou um retrato do autor numa das guardas.





Já passou um ano desde que vi o meu pai pela última vez e tem sido muito dolorosa a ausência, mas constato cada vez mais que os que nos são próximos e muito queridos nunca nos deixam verdadeiramente, pelo menos enquanto tivermos memória. No caso do meu pai, mantenho o contacto através de fotografias, de recordações e a manusear as coisas que ele estimava. Ao folhear os livros que me deixou, encontro não só o seu autógrafo, mas por vezes textos manuscritos numa caligrafia impecável, às vezes notas, uma ou outra fotografia...
Mas sinto sobretudo muitas saudades de lhe ouvir a voz e as gargalhadas...

O rapazinho que aprendeu a encadernar