terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um quadro a óleo e dois poemas

O que haverá de comum entre as Metamorfoses de Ovídio, um quadro de Bruegel e dois poemas de autores do século XX?
Há um caso notável de intertextualidade seguindo um tema que sinto muito atual e quis trazer aqui, desviando-me desta vez das habituais temáticas do blogue. Descobri-o há seis anos por esta altura, ao preparar uma comemoração do centenário de W. H. Auden (York, 21 de fev. 1907 -  Viena, 29 de set. de 1973)

Paisagem com a queda de Ícaro (Landschaf met val van Icarus)  
atribuído a Pieter Bruegel o Velho (1525-1569)
Terá sido ao mito grego de Dédalo e Ícaro, narrado por Ovídio nas Metamorfoses, que Bruegel foi buscar inspiração para esta paisagem. À primeira vista uma de entre muitas fabulosas paisagens da pintura flamenga renascentista, há um "simples" pormenor no lado direito - umas pernas no ar de um corpo que mergulha no mar - que faz toda a diferença e dá título à composição: Paisagem com a queda de Ícaro.
Por sua vez o poeta W. H. Auden, inglês de nascimento, mas vindo a naturalizar-se americano, certamente impressionado por esta obra dos Museus Reais das Belas Artes da Bélgica, em Bruxelas, desenvolve o tema num poema. Nele discorre sobre a indiferença dos homens ao sofrimento do seu semelhante e descreve a cena da pintura. O mesmo faz o poeta americano William Carlos Williams (1883-1963), dando ao seu poema o mesmo título do quadro de Bruegel.
Deixo aqui os originais e as traduções que alinhavei.

Musée des Beaux Arts
by W. H. Auden (1938)

About suffering they were never wrong,
The old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water, and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.    

Museu das Belas Artes
de W. H. Auden (1938)

Sobre o sofrimento eles nunca se enganaram,

Os velhos Mestres; como perceberam bem
A sua condição humana: como ele ocorre
Enquanto alguém come ou abre uma janela ou simplesmente passeia;
Como, enquanto os mais velhos aguardam ardentemente e com reverência
o milagroso nascimento, tem de haver sempre
Crianças, para quem ele é indiferente, a patinar
Num lago à beira do bosque;
Eles nunca esqueceram
Que até o martírio atroz deve seguir o seu curso
Algures a um canto, num local sórdido
Onde os cães levam as suas vidas caninas e o cavalo do algoz
Esfrega numa árvore o inocente traseiro.
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: como tudo vira costas
despreocupadamente ao desastre; 

o lavrador por certo teria
Ouvido o baque, o grito desamparado,
Mas para ele não era uma desgraça importante; o Sol brilhava
Como devia nas pernas brancas que se sumiam no mar esverdeado

e o navio dispendioso e delicado que deve ter visto
Algo de extraordinário, um rapaz a cair do céu,
Tinha um destino onde chegar e continuou a vogar tranquilamente.






Landscape with the Fall of Icarus
by William Carlos Williams

According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring

a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry

of the year was
awake tingling
near

the edge of the sea
concerned
with itself

sweating in the sun
that melted
the wings' wax

unsignificantly
off the coast
there was a splash

quite unnoticed
this was
Icarus drowning

Paisagem com a  queda de Ícaro  

de William Carlos Williams

Segundo Bruegel

quando Ícaro caíu
era primavera

um lavrador arava

o seu campo
e toda a pompa

do ano

estava desperta
vibrando perto

da beira do mar

concentrada 
em si 

suando ao sol

que derreteu a
cera das asas

insignificante

junto à costa 
houve um baque 

totalmente despercebido 

era Ícaro 
a afogar-se

Incomoda-me, choca-me até, a indiferença perante o sofrimento e o crescente mal-estar das pessoas que carateriza a nossa atualidade política.
Será da natureza humana de todos os tempos um certo distanciamento das desgraças alheias, sobretudo quando não está ao seu alcance remediá-las. Mas o que se passa hoje é que ostensivamente e inexplicavelmente, as vidas da gente comum deixaram de preocupar quem, a nível nacional ou supra-nacional, tem o poder e o dever de tomar decisões que lhes sejam favoráveis... e eu acho  isso não só uma regressão, mas uma perversão!




quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Galheteiro em faiança de Gaia ou de Miragaia?



Tinha este galheteiro de faiança já há algum tempo à espera de saber algo mais sobre ele, para além de, pela decoração, lhe atribuir origem "porto-gaiense". Bem sei que haveria muita gente a afirmar a pés juntos que ele é de Miragaia, mas já sabemos como essa atribuição é muitas vezes errónea, havendo várias outras possibilidades.
Os galheteiros que tenho visto com atribuição séria a Miragaia, ou estão marcados com o R de Rocha Soares, ou, marcados ou não, apresentam a base vazada, em policromia com grinaldas ao gosto neoclássico ou com argolas circulares ou ovais que se sucedem a toda a volta.


A semana passada, na minha última visita ao Museu Soares dos Reis, no Porto, reparei num exemplar em pó de pedra dentro duma vitrine, com exatamente o mesmo formato deste meu galheteiro, quer na pega, quer nos encaixes cilíndricos da base, quer no recipiente frontal em forma de concha com tampa. Vê-se a parte de trás na foto dentro da vitrine, e foi pela forma da pega, em D ou orelha, que me apercebi da semelhança.

Vitrine do Museu Soares dos Reis com faiança da Fábrica do Cavaquinho

Entretanto, já encontrei vários com a mesma estrutura e formato nas coleções dos museus nacionais, uns em pó de pedra outros em faiança mais grosseira, mas sempre em museus do Norte. Foi do Matriznet que copiei a foto que se segue, do mesmo exemplar que está dentro da vitrine, e para comparar juntei-lhe uma fotografia do meu galheteiro em "pose" idêntica.



Acontece que o galheteiro do MNSR,  como as restantes peças de pó de pedra que o acompanham, está atribuído à Fábrica do Cavaquinho, uma das unidades cerâmicas instaladas junto ao Douro no final do séc. XVIII, a par de Massarelos e de Miragaia, mas na margem de Gaia. Só que se trata de uma segunda sociedade fundada com este nome em 1786, que integrava o Dr Domingos Vandelli  já ligado à produção cerâmica em Coimbra, e que, ao contrário da primeira unidade fabril, dedicada à faiança, decidiu lançar-se no fabrico de louça de pó de pedra à maneira inglesa, projeto que foi bem sucedido durante alguns anos, até às invasões francesas. É desse período o galheteiro que se vê na vitrine.


Quanto a este meu, não será fabrico Cavaquinho, pelo menos não desse período já que não é em pó de pedra e tem um vidrado muito brilhante, mas é possível que tenham pertencido a essa fábrica, ou sido dela copiados, os moldes onde ele foi buscar a forma.
A Fábrica do Cavaquinho, em fases posteriores, dedicou-se à faiança de novo e pode até ter fabricado este tipo de galheteiros. Mas já em período decadente, a meados de oitocentos, acabou por ser vendida ao proprietário da Fábrica da Fervença, quando este teve que abandonar as primitivas instalações, bastante próximas do centro de Gaia, e passou a laborar ali. Quem sabe se ainda lá estavam muitos dos primitivos moldes prontos a serem reutilizados?
E agora, só para baralhar um pouco, resolvi aqui acrescentar uma base de galheteiro que encontrei à venda numa feira... como azeitoneira!


Está em péssimo estado, com o vidrado todo a descascar-se, mas a forma é a mesma, ressalvando que os encaixes cilíndricos são mais baixos e de maior diâmetro, como ligeiramente maior é o tamanho da concha.

Quanto à decoração, onde é que eu já vi isto? Lá para os lados de Viana... ou será Fervença?!

Entretanto, mais uma vez a If, que também gosta de galheteiros e no seu comentário admite a hipótese de o meu galheteiro ser de Miragaia - eu diria que sim pela decoração mas não pela forma - enviou-me várias fotografias de um belo exemplar seu, certamente bastante mais antigo e com pormenores de maior requinte.

A mesma estrutura e número de elementos

A elegância das galhetas e a concha com divisória ao meio

Decoração de grinaldas e laços ao gosto neoclássico

A pega mais fina mas de desenho semelhante
Este a ser Miragaia, uma hipótese que também se coloca, seria certamente do 1º período (1775 - 1822).

Graças à achega da If sobre o meu galheteiro, até já acrescentei o título do post!!!

Nota: A informação que aqui partilho sobre a Fábrica do Cavaquinho obtive-a em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3834.pdf

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Mais dois beirais de faiança no Porto

Este fim de semana andei novamente pelas ruas do Porto a fotografar beirais de faiança: um que já sabia que existia, mas  num local onde nunca tinha ido; o outro numa rua onde já passei inúmeras vezes, mas que foi surpresa completa!
O primeiro foi o palacete da Quinta de S. Roque da Lameira na zona oriental do Porto, que conhecia através do Google Street View por indicação do amigo Fábio Carvalho, sempre muito interessado e muito atento a estas coisas.


Era a casa da Quinta da Lameira, uma das grandes quintas de Campanhã, que pertenceu à antiga família Cálem, um  nome sobejamente conhecido pela sua ligação ao comércio do vinho do Porto.
Nos anos 70 do século passado foi comprada, casa e quinta, pela Câmara Municipal do Porto. A quinta foi aberta ao público como Parque de S. Roque, enquanto a casa foi ocupada por um organismo municipal, mas está agora infelizmente vazia e a degradar-se.


O que me levou lá foi a curiosidade em ver e fotografar os beirais de faiança e esses continuam belos e intactos, ou quase, nos vários corpos da casa, embora num motivo já nosso velho conhecido. Mas também ali se encontram belos painéis de azulejos e esses sim já  têm muitas falhas a necessitarem urgentemente de ser preenchidas...

Não só no motivo floral, mas também no friso da borda a azul, estes telhões são iguais aos da Quinta de S. Tomé em Ovar, aos de uma casa da Ribeira do Porto e aos da Casa-Museu Teixeira Lopes em Gaia... e este facto faz-me acreditar que terão sido fabricados na Fábrica das Devesas, como já referi num post anterior.

Um cenário romântico no jardim das traseiras, para trás do qual se estende
o Parque de S. Roque
No regresso ao centro do Porto da visita à Rua de S. Roque da Lameira, ao passarmos junto ao Mercado Ferreira Borges, descobri num dos prédios contíguos ao Palácio da Bolsa mais um beiral azul e branco.


E em contraste com as pesadas cantarias de granito, é todo revestido a azulejos, também em azul e branco, com motivo em relevo como muitos que se encontram nesta zona da cidade.


Também aqui o motivo dos telhões já é nosso velho conhecido. Só ali perto conheço mais dois beirais com este motivo,  um no Largo de S. Domingos e outro na Ribeira, mas também há um na rua do Almada e já mais longe um outro na Rua de Cedofeita, um dos primeiros que fotografei.
Eu diria até que no Porto são  os dois motivos de hoje os que se encontram em maior abundância nos beirais de faiança. Mas espero encontrar mais, destes ou doutros...




segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Chá para dois - Tea for two



Como seria de prever, o tema para o chá desta semana com Tea Cup Tuesday, Tea Time Tuesday e Tuesday Cuppa Tea é o dia de S. Valentim ou Dia dos Namorados que se assinala daqui a dias. É uma tradição que os ingleses cultivam há séculos, mas que hoje se celebra não só no mundo anglófono mas um pouco por todo o lado e cada vez mais também neste pequeno torrão ibérico virado para o Atlântico. Este ano, quase coincide com o nosso Carnaval!
As should be expected, the theme for this week's tea with Tea Cup Tuesday, Tea Time Tuesday and Tuesday Cuppa Tea is Valentine's Day, a celebration that will take place in a few days. It's a tradition that the British have been keeping for centuries, but today it's celebrated not only in the English-speaking world, but almost everywhere else, and more and more in this Iberian stretch of land facing the Atlantic. This year, it almost coincides with our Carnival!


Assim, pareceu-me adequado escolher um tête-à-tête decorado com pares românticos em silhuetas, com a particularidade de servir para chá e para café, como se pode ver pela graciosa cafeteira e pelas chávenas de café que fazem parte do conjunto.
So, I found it appropriate to choose a tea for two set, decorated with silhouette romantic couples, which can be used for both tea and coffee, as one can see by the graceful coffee-pot and the coffee cups that are part of the set.



Encantei-me por ele na Feira de Velharias de Aveiro há mais de meio ano, mas mantive-o embalado  até agora. Gostei das formas delicadas, da decoração elegante, admirei a presença do tabuleiro ainda impecável... e por metade do preço que estava marcado, veio juntar-se à tralha  cá de casa.
I fell in love with it at Aveiro monthly flea market over half a year ago, but I've kept it wrapped until now. I enjoyed the delicate shapes, the elegant decoration, the presence of the tray still in mint condition... and for half the price on the tag, it came to join all the "junk" I have at home.


É de fabrico português da Porcelana de Coimbra, fundada no início dos anos 20 do século passado e que se veio a tornar na Sociedade de Porcelanas de Coimbra; mais tarde, já nos anos 40,  passou para a posse da Vista Alegre.
It is Portuguese made, by Porcelana de Coimbra, established in the early 1920s, which became Sociedade de Porcelanas de Coimbra; later, already in the 1940s, it was taken over by Vista Alegre porcelain factory.




Tanto as formas muito retas das peças, moldadas em canelado, como a opção decorativa pelas  riscas verticais delimitadas a preto, parecem-me revelar um gosto Arte Déco, mas à época, anos 20, seria ainda incipiente em Portugal. 
Both the straight shapes of the pieces, moulded in flutes, and the decorative option for vertical stripes enclosed by black lines, seem to reveal an Art Deco taste, but at the time, the 1920s,  it would be still incipient in Portugal.


Exceptuando o tabuleiro e os dois pires - não sei se terão existido quatro - todas as peças estão marcadas, mas curiosamente com duas marcas diferentes da Porcelana de Coimbra, uma delas em forma triangular, para mim desconhecida, mas parecendo ter as mesmas três figuras do brasão da cidade no centro do triângulo.
Except for the tray and the two saucers - I don't know whether there have been four - all the items are marked, but curiously with two different marks of Porcelana de Coimbra, one of them in triangular form, unknown to me, but seeming to bear the same figures of Coimbra coat of arms in the centre of the triangle.




Não posso deixar de fazer referência à toalha antiga com rendas da primeira e última fotos, que pertenceu a uma  minha bisavó e eu recebi da minha avó materna já muito usada e por isso, para a conservar o mais possível, raramente a usei à mesa. Trouxe-a aqui para dar um toque romântico à cena, tal como as obras de Goethe, cujo apaixonado e sofredor Werther é considerado o herói romântico por excelência.
I must also refer this antique tablecloth with lace, in the first and last photos, that belonged to one of my great-grandmothers and came to me from my maternal grandmother, already very much used and so, to keep it as much as possible, I've  rarely used it on the table. I brought it here to give the scene a romantic touch, as well as Goethe's works, whose Werther, suffering in love, is considered to be the ultimate romantic hero.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Base de fruteiro em encanastrado "pearlware"


Esta pequena travessa de faiança inglesa foi seguramente a base de um fruteiro, igual ao que se vê nas fotos abaixo.
Foi mais uma das minhas descobertas das feiras de velharias que, estando em perfeito estado e contando duzentos anos ou mais, comprei por meia dúzia de euros, penso que na Feira da Vandoma, no Porto.

Fruteiro e respetiva base (c. 1800) à venda no Ruby Lane

Este modelo de peças começou por ser fabricado no final do século XVIII em creamware - faiança de cor creme - tanto em Staffordshire, por Josiah Wedgwood e outros, como em Leeds, mais a norte no Yorkshire.
Foi nesta pasta,  melhorada por Wedgwood, que foi fabricado em 1774 o famoso serviço da rã para a Imperatriz Catarina II da Rússia, um serviço de jantar de 952 peças decoradas com paisagens inglesas.
Anos mais tarde, com a pasta de faiança desenvolvida por Wedgwood conhecida por pearlware, estes fruteiros encanastrados continuaram a ser fabricados e apesar da sua fragilidade, alguns resistiram à passagem de dois séculos. No caso da minha peça, só a base cá chegou...
Durante muito tempo pensei tratar-se de uma peça creamware, mas li entretanto que o pearlware se consegue identificar por uns tons azulados que ficam nas peças, geralmente na base, nos locais onde se acumula o vidrado, e esta travessa apresenta essa caraterística.

Os tons azulados do vidrado mais visíveis na junção do rebordo

Não tem qualquer marca, por isso não lhe posso atribuir fabrico, mas fosse quem fosse que a fabricou, conseguiu fazê-lo graças ao génio e espírito inovador de Josiah Wedgwood, a quem se devem as experiências em pastas cerâmicas com que conseguiu melhorar as já existentes, como o creamware, (depois desenvolvido para pearlware) e o black basalt (chamado antes dele, em pasta mais grosseira, Egyptian Black), não esquecendo a sua  principal inovação, o jasperware,  que o tornou mundialmente conhecido e com todo o mérito!

Página do meu livrinho, The story of Wedgwood, mostrando peças do serviço de Catarina a Grande
Voltando à minha travessa, acho-a uma peça bonita e elegante, mas o que mais me fascina nesta como noutras faianças e porcelanas inglesas antigas, é a sua ligação à riquíssima história da produção cerâmica em Inglaterra nos alvores da Revolução Industrial.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Um prato com pinta de ser de Gaia



Tenho este prato de faiança há talvez um ano.
Não sei bem porquê, não tenho por hábito trazer aqui peças adquiridas há pouco tempo, parece que para falar delas preciso de um período mais ou menos longo de convívio :) - preciso de as observar durante algum tempo, de pesquisar sobre elas, de as conhecer melhor - mas  neste caso o convívio prolongado não resultou em nenhum conhecimento especial...
Este prato, com 33 cm de diâmetro, foi comprado na Feira de Algés, relativamente barato por estar partido, colado e gateado,  mas é um exemplar que transpira autenticidade e me dá muito prazer poder ver diariamente num lugar bem movimentado da casa.
Tem história, o que é atestado pelo busto de militar que lhe serve de tema central, sendo muitos bustos semelhantes  identificados com a figura do rei D. Miguel. Foi um tema popular nas faianças gaienses do século XIX, sobretudo tratado pela Fábrica da Bandeira em garrida policromia.
Esta figura real, defendendo o absolutismo do antigo regime, contra os ideais liberais do irmão D. Pedro, por algum motivo que me escapa, terá sido muito amada pelo povo, daí talvez a popularidade deste tema. Mas pergunto a mim própria se neste caso, sendo a figura representada com um bigode e ladeada de exóticas palmeiras, não pretenderá retratar antes D. Pedro, o IV de Portugal e o I do Brasil ou qualquer outra figura histórica...

O motivo das duas palmeiras aparece  noutras faianças atribuídas a  Gaia, como o exemplar acima que encontrei na internet (já não me lembro onde) e guardei, mas nunca o vi noutros pratos com busto de militar. Um pormenor gaiense comum aos dois pratos é a vegetação delimitada por uma série de pinceladas, espécie de esponjados, tendo pelo meio uns desenhos filiformes muito caraterísticos, que já salientei num outro post. Mas também Miragaia, do outro lado do rio, os apresenta.
O problema é que ser de Gaia significa poder ter sido fabricado por uma entre mais de uma dezena de fábricas ou oficinas de cerâmica, das quais as mais vezes referidas são Fervença, Bandeira, Afurada e Santo António de Vale da Piedade, todas com produção no século XIX e até a entrar já no XX, usando muitos motivos semelhantes.
Acho que nunca conseguiremos ultrapassar esta dificuldade...

Pratos de um catálogo da Leiria e Nascimento, dois deles com o busto de D. Miguel.
O da direita (nº81) é atribuído à Fábrica da Bandeira.

Entretanto o amigo Fábio Carvalho enviou-me um link no seu comentário onde se podem ver mais três exemplares de faiança portuguesa com bustos deste tipo:
                 http://s12.beta.photobucket.com/user/fabiocarvalho/library/Portugal

E agora, graças ao comentário dos AM-JMV, ganhou consistência uma outra hipótese em relação à figura representada no meu prato azul e branco. Sugeriram eles poder esta figura evocar os militares e exploradores das campanhas de África, no final do século XIX, figuras que se tornaram muito populares dado o impacto que as decisões da Conferência de Berlim - e a rejeição das nossas pretensões aos territórios africanos do mapa cor de rosa  que atingiu o auge com o ultimato inglês - provocou em toda a população portuguesa.

Alexandre de Serpa Pinto, tornado um herói nacional após arriscada
e solitária travessia do interior de África (1879)
Em imagens da época, estes homens aparecem com os seus caraterísticos capacetes de exploradores, podendo ter sido esse o modelo para o tosco desenho da figura do meu prato... que também usa capacete!
Capelo e Ivens nos seus trajos de exploradores africanos 

Este seria um período mais consentâneo com a provável data de fabrico do prato, que a mim me parece ser o final do século XIX, já distante da guerra civil entre liberais e absolutistas que pôs na ribalta as duas figuras reais que referi em cima.

Ainda mais um importante contributo, desta vez da If. No seu comentário lembrou que o nosso amigo LuisY, no Velharias, já publicou um prato ratinho com o busto de Serpa Pinto, mas ele certamente não se lembrou de o referir no comentário que fez aqui. Vale a pena ir lá apreciá-lo.