segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os "Mil e um Mistérios" de Castilho




Admito que possa haver mistérios na vida pessoal ou literária de António Feliciano de Castilho(1800-1875), mas aqui refiro-me ao título do único romance que lhe é conhecido, Mil e um Mistérios, a que ele, talvez ironicamente, deu o sub-título de Romance dos Romances, mas que deixou inacabado.
Sempre interessada por assuntos da história local, descobri-o há anos na minha biblioteca escolar, não só esta edição da Câmara Municipal de Águeda, que assinalou os anos de permanência do escritor na freguesia de Castanheira do Vouga durante as Guerras Liberais, mas também a edição de 1907 de que falarei adiante.
É um romance bairradino, já que a ação se passa na Bairrada, o que não surpreende quem saiba que Castilho  tinha familiares na Bairrada e aqui passou longas temporadas.

Edição da Câmara Municipal de Águeda

A história do romance centra-se em Aguim, aldeia muito antiga do concelho de Anadia, onde o escritor tinha as suas raízes do lado paterno (já agora, também o escultor Machado de Castro ali tinha ligações familiares) e encontram-se no romance referências a muitas outras localidades bairradinas - Águeda, Luso, Mogofores, Mealhada, Peneireiro, Tamengos (a freguesia a que pertence a estância termal da Curia) - e à Mata do Buçaco,  servindo de cenário para uma evocação da vida na Bairrada a meados do século XIX.

Os trinta capítulos desta obra foram publicados por Castilho em 1845, mas a história ainda estaria longe do seu desfecho e, estranhamente, apesar de ainda ter vivido mais 30 anos, não se lhe conhece a publicação de mais uma linha sequer de Mil e Um Mistérios. Foi já postumamente, na edição de 1907, que saiu a lume um acrescento, ainda sem conclusão, que tinha ficado em forma de manuscrito à guarda do seu secretário - não nos podemos esquecer que o escritor ficara cego ou quase cego na infância (talvez agora lhe chamássemos amblíope?) e tinha que ditar todos os seus escritos.

Os dois volumes da edição de 1907
A obra, com os trinta capítulos e o acrescento intitulado O Frade, surgiu com os números 52 e 53 na edição das Obras Completas de António Feliciano de Castilho, por iniciativa do filho Júlio de Castilho.
É um romance de aldeia que se pode considerar precursor do romance campesino, um tipo de romance cuja criação é atribuída a Júlio Dinis, duas décadas mais tarde. No entanto, com a ação localizada num ambiente de aldeia bairradina, temos a mestria de Castilho a levar-nos constantemente, mas sempre a propósito da narrativa, para personagens e autores das literaturas europeias suas contemporâneas ou para figuras e mitos das civilizações clássicas, em referências e comparações cheias de ironia e de humor.
Penso que é uma obra difícil de enquadrar em qualquer corrente literária. Ali encontramos, desde episódios picarescos cheios de comicidade,  a descrições pormenorizadas dos falares, trajes e  costumes aldeãos, caraterísticas do realismo então incipiente, referências  a figuras da mitologia clássica, próprias do arcadismo em que o autor se formou, passando por personagens de índole romântica, cujas ações e atitudes são influenciadas por leituras de obras bem populares do romantismo.

Um dos meus exemplares, edição de 1938

 Na tripla dedicatória do romance deparamos com mistérios a acrescentar aos outros mil e um do enredo: porquê dedicar a obra aos leitores do ano 1900 e a quatro escritores portugueses contemporâneos que Castilho não identifica, adivinhando-se que o faz com a mesma ironia com que a dedica a todas as boas mulheres. Escritores já consagrados à época, 1845, eram Alexandre Herculano e Almeida Garrett, da primeira leva de românticos, mas quem seriam os outros dois?


No trigésimo capítulo, intitulado o ermo, o cenário é o chamado Deserto do Buçaco onde se instalou uma comunidade de Carmelitas Descalços no século XVII. Faz uma descrição fabulosa da mata plantada e cuidada pelos carmelitas durante dois séculos, então já de lá ausentes há doze anos, segundo nos diz o próprio narrador. 
E é com o protagonista, João Simões, a deambular pela mata e a ter um misterioso sinal de presença humana, que termina esta parte da obra em capítulos. Tal desfecho terá permitido associar-lhe o manuscrito  "O Frade", acrescentado ao romance em 1907.



6 comentários:

  1. Há dias em que aprendemos coisas novas, importantes. Foi, hoje, o caso, Maria, com este seu poste. E, embora Castilho não pertença ao meu grupo de eleitos poetas portugueses, alguma coisa lhe conheço.
    Mas desconhecia, por inteiro, esta sua tentativa de incursão no romance. Tomei nota, e obrigado.
    Desejo-lhe uma boa noite!

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    1. Fico muito satisfeita por saber que este poste lhe trouxe algo de novo na área da literatura, que tão bem domina, APS!
      Se esta obra tivesse sido acabada, penso que seria um dos romances populares do nosso século XIX e talvez Castilho não fosse hoje um escritor tão mal-amado e esquecido. Não deixa de ser um dos nossos grandes mestres da escrita, mais um que nos temos dado ao luxo de desprezar...
      Uma boa noite também para si!

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  2. De facto, o Castilho anda um bocadinho esquecido.

    Recordo-me que havia um busto representando o poeta cego, à entrada do bar da Biblioteca Nacional, mas o meu contacto com ele não passará disso. Claro, terei catalogado umas quantas obras dele, mas nunca li nenhuma. Também é verdade que no geral os autores portugueses nunca me despertaram grande interesse, à excepção, claro do Camilo Castelo Branco.

    Será sem dúvida uma falha minha, mas falta-me a oportunidade. Teria que ter mais tempo para ler e não estar tantas vezes em frente ao computador. Faço poucas incursões pela literatura portuguesa antiga ou moderna. Li há uns anos um romance do Miguel Sousa Távares, o Equador, que achei "assim-assim" e li finalmente a Agustina e confesso que gostei da Sibila. Embora seja uma escritora rebuscada, julgo que faz retratos femininos extremamente complexos, capacidade essa que o Eça e o Camilo nunca tiveram.

    Bjos e boas férias

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    1. Também eu, Luís, não tenho andado grande leitora de literatura e certamente este nosso mundo dos blogues e o interesse crescente por pesquisas na área da cerâmica são bastante responsáveis por isso.
      Sempre me dispersei muito por autores estrangeiros, mas não deixei de ler os nossos grandes romancistas do séc. XIX e XX com Saramago entre as minhas preferências. Mas nunca li nada de Agustina, por exemplo. Tenho que me redimir dessa falha... ;)
      Obrigada pelos votos de boas férias, que vão sendo intermitentes, e desejo que as suas, que certamente se aproximam, também corram o melhor possível.
      Beijos

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  3. Apesar do nome ser sonante, não conheço nada escrito por este senhor.
    Tentei ler tudo o que me caíu na mão, e, mais tarde, quando o podia fazer, comecei a escolhê-los, e não querendo enumerá-los, pois não teria sentido, continuo fortemente enamorado da prosa de Herculano ou Júlio Dinis (não entendo porque é tão pouco amado), mas, e sobretudo, Eça, que continuo a reler, e sempre com prazer
    Quanto à poesia pura e dura, bem, isso é outra história. Não a evitando, leio-a em doses muito contidas, pois, bastas vezes, dou por mim a não sentir qualquer empatia com aqueles sentimentos que muitas vezes me parecem tão exacerbados, desiquilibrados e desaustinados.
    Há exceções (a minha homenagem à Sophia, que continua a ser muito especial) ... mas, no meu caso, não são muitas
    Manel

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  4. Manel, conhece certamente um poema de Castilho, "Os treze anos" que foi cantado pela Amália como "Pedro Gaiteiro". Só que não se relaciona geralmente com o autor, considerado muito clássico e formal. É este lado mais alegre e popular de Castilho que também se revela nos "Mil e um Mistérios", sem perder a qualidade literária da escrita de um mestre da língua portuguesa.
    Quanto à Sophia, curiosamente é dela o último livro de poemas que comprei, "Cem poemas de Sophia" e escolhi um para lhe transcrever aqui:

    Exílio
    Quando a pátria que temos não a temos
    Perdida por silêncio e por renúncia
    Até a voz do mar se torna exílio
    E a luz que nos rodeia é como grades

    Bom fim de semana!

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