quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Uma pequena paisagem... de Rubens

Paisagem com leiteiras e vacas
Foi no início do verão passado, com os olhos ainda cheios das paisagens nórdicas do Museu do Prado que estiveram em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga, que me senti atraída por esta paisagem, emoldurada com dignidade, mas muito suja e manchada, no chão de uma feira de velharias.
Ao pegar nela reparei imediatemente nas inscrições, entre elas o nome P. P. Rubens, mas custou-me a acreditar que fosse o tal! Perguntei o preço, pouco mais de meia dúzia de euros, e ainda hesitei porque efetivamente as manchas de "foxing", que conheço muito bem como resultado da humidade nos livros, nunca mais desaparecem e sem dúvida retiram beleza a qualquer obra em papel.

O estado da gravura ao ser retirada da moldura

 Para além das manchas, havia sinais bem nítidos de que a gravura em tempos foi enrolada e depois passou parte da vida guardada e esquecida numa qualquer estante ou armário, certamente com pilhas de livros por cima, o que lhe deixou vincos irremediavelmente marcados no papel.
Bem, mas tinha esperança de poder fazer alguma coisa para melhorar o aspeto geral e tinha já certo o prazer de ter muito para descobrir por trás dos nomes inscritos num e noutro lado da margem inferior.


Começando pelo lado esquerdo, confirmei por pesquisa no Google, que foi Peter Paul Rubens (1577-1640)  que pintou esta paisagem e que Schelte à Bolswert fez o trabalho de gravação. 
Quanto a  Rubens, pouca gente desconhece o nome e a importância que teve como pintor flamengo do século XVII, com uma obra vasta em várias temáticas - retrato, paisagem, cenas bíblicas, históricas e mitológicas.
Já Schelte à Bolswert (1586 - 1659), também conhecido por Schelte Adamsz. Bolswert, era para mim inteiramente desconhecido, mas fiquei a saber que foi um gravador profícuo de mérito reconhecido, nascido na cidade de Bolswert, na Frísia - lá, como cá, o hábito de usar como apelido o nome da terra de origem - e que trabalhou muitos anos em estreita ligação com Rubens, tendo continuado após a sua morte. 


Do lado direito vemos o nome do impressor, Gillis Hendricx, de Antuérpia, cidade onde Rubens trabalhou e veio a morrer.
Soube também que Bolswert gravou, entre muitos outros trabalhos,  não só as grandes paisagens de Rubens, mas também a série de pequenas paisagens, 20 ao todo. Para gravura,  não são propriamente pequenas - cerca de 35cm x 45cm (a folha).
Continuando a pesquisa à procura das pequenas paisagens com os dados constantes nesta gravura, fui ter ao Museu Britânico, onde encontrei duas gravuras exatamente iguais à minha, datadas de 1638.

A paisagem humanizada do lado esquerdo da gravura

Qualquer das duas é assim intitulada e descrita: Pequeno lago com vacas e duas leiteiras; paisagem com um pequeno lago contendo juncos, uma das leiteiras inclina-se para encher um balde com água e uma das vacas esfrega o pescoço contra o tronco de uma árvore em baixo à esquerda, um pescador senta-se na margem ao longe à esquerda.
Estas são as cenas que tanto proliferam nas loiças inglesas decoradas a transferprint e que foram certamente a sua fonte de inspiração: campo, riachos, leiteiras, vaquinhas, pescadores...

Peter Paul Rubens - "Paisagem com leiteiras e vacas" - Museu de Liechtenstein
Foi naquela página online do Museu Britânico que soube que o original de "Paisagem com leiteiras e vacas" se encontra na coleção do Museu de Liechtenstein, (não em Vaduz, como lá éstá indicado, mas em Viena, Áustria) e que esta foi a primeira paisagem autónoma pintada por Rubens, em 1616. Surpreendeu-me vê-la  em espelho em relação às gravuras, mas se não fosse esse facto, a semelhança é tal que poderia parecer que as gravuras eram fotocópias a preto e branco, em escala mais reduzida, da pintura original.
Assim, a cores, a cena enche-me o olhar!
Resolvido o desafio da identificação e da descoberta de informação, havia que melhorar o aspeto da gravura e por isso decidi levá-la a uma casa de molduras só para que cortassem um passepartout em cartolina que cobrisse toda a margem desfeada pelo "foxing".



Assim foi feito, foi passada a ferro com cuidado e de novo emoldurada e agora já tenho o meu Rubens pendurado na parede!  ;)


8 comentários:

  1. Embora Rubens não seja pintor da minha eleição, os meus parabéns pela descoberta, sua aquisição e melhoramentos notórios da gravura!..:-)

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    1. Muito obrigada, APS, eu também fiquei muito feliz com o resultado!
      Um bom dia para si!

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  2. Querida Maria A.

    Você e o Luis são terríveis...

    Nada escapa. E que bom que partilham conosco esses achados.

    Muito linda esta gravura. Aprendi a apreciá-las com o Luis e com o Manel. Antes era só uma Arte ao lado de tantas.

    Por falar no Manel, se puder. Mande um abraço. Há tempos não o "vejo".
    Sua apreciação é preciosa. E ele sabe.

    Maria A..

    Que beleza os elementos de Presépios:

    Arrisco umas idéias:

    1- Aqueles Cavalos Galopantes são, com grande chance, inspirados nos cavalos das Fontanas italianas (Trevi, etc). Talvez tenham passado primeiro para os Presépios Napolitanos (tão lindos) e daí para os demais.

    2- O grupo que mais me encantou foi o da Adoração do Menino Sem Cabeça. Uma pena que tenha se perdido. Tudo pode faltar, menos a cabeça. Mesmo assim o grupo é lindo. Tenho uma Mariazinha de Presépio sem José e sem Jesus. Bem inteira. Claro que posterior, em barro bem cavado. Mas linda e com traços do XVIII, que certamente perduraram nos modelados. E preço como de sua Gravura...

    3- FUGA DE BARCO PARA O EGITO: Que legal. Eu também nunca tinha visto nem ouvido falar num cenário desses... Os artistas vão traduzindo e ampliando as Escrituras (sem necessariamente, com isto, acrescentarem um "J" à letra Divina) nos modelos plásticos.
    Se no caminho do Egito à Terra Santa atravessaram o Mar a pé enxuto, por façanha de Moisés (e Deus). Agora a Sagrada Família usa um barco, naturalmente, para fazer o caminho oposto. O primeiro milagre, segundo as Escrituras, se dará bem mais tarde nas Bodas.

    4- E os elefantes: "Uma multidão de camelos e dromedários a ti acorrerão com suas riquezas... " (Escritura Sagrada). Mas os "presepeiros" geniais encontraram elefantes com muito mais capacidade para carregar riquezas até o Rei dos reis...

    Quando tiver um tempinho, diga o que achou das minhas últimas peças, sobretudo o prato do galo, que queria tanto fosse do Norte.

    Um abraço.

    ab

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    1. Escapa-nos muita coisa, amigo Amarildo, pelo menos do que é mais conhecido e tem mais valor comercial. O que é bom e barato vai em primeiro lugar para os vendedores que dão sempre uma volta, o mais cedo possível, pelas bancas dos colegas... A vantagem de pessoas como nós, penso que também posso falar pelo Luís, é a de conhecermos e apreciarmos coisas que outros não valorizam... e não procurarmos só o que está em perfeito estado.
      Eu sempre gostei de gravuras antigas, sobretudo aprecio as ilustrações de livros e às vezes comprava uma ou outra gravura emoldurada, sem grande critério. Foram os postes do Luís que me entusiasmaram a pesquisar mais e a escrever sobre as descobertas que fui fazendo. Desta vez deu-se a coincidência engraçada de ambos termos encontrado uma gravura "after Rubens". E quanto ao Manel, claro, é uma presença imprescindível nos nossos blogues, com comentários que trazem sempre apreciações preciosas, como você diz, e muitas palavras de incentivo.
      Agradeço-lhe as notas que aqui deixou sobre o tema anterior, algumas achegas pertinentes sobre assuntos que domino mal. Quanto ao seu prato do galo, não sou nenhuma expert sobre faianças , mas já o vi e tenho a minha opinião. Logo lá passo para lhe deixar um comentário.
      Um abraço

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  3. É interessante como os vossos posts, o seu e o do Luís, continuam coordenados, e ambos com Rubens.
    Durante muito tempo a cópia em gravura, ou outra, dos mestres era assunto frequente, para quem, como praticamente todos nós, não possuímos meios económicos para ter os originais.
    Passou à história, este uso, o que foi pena, pois, como consequência, o virtuosismo da gravura caiu no esquecimento.
    Ficaram-nos os documentos do passado, os quais vamos tranquilamente colecionando, para que os vindouros também o possam usufruir, se assim o quiserem.
    Estas manchas do papel, que, segundo li algures (tenho algo sobre este assunto na barafunda que é a minha "biblioteca" do Alentejo, espero que dentro em breve consiga ter estantes onde a consiga arrumar, para que o possa redescobrir de novo), estão relacionadas com a degeneração da composição química dos materiais usados no fabrico do papel, processo que, parece, pode ser invertido. Não sei química para o poder entender, mas creio que existem fórmulas de limpeza do papel antigo.
    No entanto esta sua gravura ficou muito bonita e bem emoldurada, e altera logo a conceção estética que temos de uma parede.
    Os parabéns pela paciência e pela segunda vida que esta obra passou a ter, pois, doutra forma, um destes dias estaria cheia de bolor e a um passo do caminho para o lixo.
    Uma boa semana para vós
    Manel

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    1. Manel,
      É verdade que desta vez houve mesmo coincidência no tema entre mim e o Luís. Não é de admirar quando os gostos também são tão coincidentes e está sempre a vir tanto estímulo desse lado...
      Esta gravura tinha ficado em standby porque eu achava que, com este tipo de manchas não melhoraria muito com a lavagem do papel e elas teriam que ser ocultadas de outra forma. O chamado foxing é atribuído a várias causas, acidificação é uma delas e tem realmente a ver com a composição química do papel, mas as más condições de humidade parecem estar sempre presentes como causadoras ou potenciadoras deste tipo de problema.
      Finalmente, há pouco mais de uma semana, como tenho paredes que ando a precisar de "encher" porque mudei muita coisa ;) peguei mesmo na gravura e ocorreu-me esta solução. Há mais material a recuperar, mas com problemas sobretudo nas molduras e ainda não decidi se vai ser molduras novas ou restauro.
      Dava-me jeito ter o Manel por perto e poder contar com os seus conhecimentos e aconselhamento...
      Obrigada e uma ótima semana também para si.
      Abraços

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  4. Maria Andrade

    O Manel já me tinha falado esta estampa de Rubens, mas como tenho estado com uma grande gripe nem tenho vindo à internet.

    Gostei imenso da estampa e a Maria Andrade identificou-a muito bem.

    Também acho curioso fazer aqui uma nota de como as obras impressas na Flandres eram tão comuns em Portugal. Só vem reforçar a ideia de que há uns quantos países com os quais Portugal mantem relações artísticas, culturais e comerciais privilegiadas quase desde meados da Idade Média até aos dias de hoje. O que é hoje o estado moderno da Bélgica, que nem duzentos anos tem, foi uma zona importantíssima em termos de relações exteriores para o nosso país e de facto estas pequenos pedaços de papel testemunham a importância sempre contínua da Flandres em Portugal.

    Anda a propósito do impressor Cornellius Galle, numa das minhas pesquisas, acabei por recordar que já tinha apresentando outra estampa dele, representando o nosso Rei D. Fernando I. Os flamengos estão presentes em todo este mundo da impressão que chega a Portugal.

    bjos e parabéns

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    1. Olá Luís
      Então não conseguiu escapar a esta gripe malvada? Desejo-lhe um rápido e completo restabelecimento!
      Foi uma reflexão interessante que aqui deixou. Realmente, os nomes flamengos, os artistas da Flandres, estão sempre muito presentes na história da arte em Portugal e encontramo-los não só em museus, mas também nas catedrais, na arquitetura, nos retábulos... e também como intermediários de encomendas importantes como os azulejos hispano-árabes, graças à sua forte ligação a Espanha.
      E aqui temos nós, nas nossas pequenas estampas, o reflexo de tudo isso. Já fui (re)ver a sua gravura de D. Fernando do Cornellius Galle, e com ela encontrei muita informação que já não tinha presente. Com uma coleção tão vasta como a que já tem, é natural que alguns dados das estampas fiquem no esquecimento.
      Um bom resto de semana... de preferência em descanso!
      Beijos

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