quarta-feira, 7 de março de 2012

De novo Charles Dickens


Não só durante o passado mês, mas durante todo este ano, multiplicam-se por todo o mundo, sobretudo no mundo anglófono, as celebrações dos 200 anos do nascimento de Charles Dickens, a 7 de Fevereiro de 1812, como já referi no post comemorativo.
Nesse post, há precisamente um mês, propus-me  voltar a falar de Dickens, sobretudo da minha relação com a sua obra, e achei que hoje, também dia 7, seria um dia apropriado.
A minha iniciação a Charles Dickens foi feita ainda na infância, quando o meu pai me falava de personagens como Oliver Twist, o Sr. Pickwick ou o Pip de Grandes Esperanças e por isso, sempre que falo em Charles Dickens, regresso à minha meninice. Uma das obras de Dickens que tínhamos em casa  era o Oliver Twist das edições Romano Torres, e foi por aí que comecei, acompanhando com muita tristeza e compaixão as desventuras do pobre rapazito órfão.


O meu pai sempre apreciou muito o humor de Dickens e, ele próprio uma pessoa bem humorada, gostava, e gosta, de citar frases de algumas personagens, como o Sr. Pumblechook de Grandes Esperanças que dirigindo-se ao Pip, ao cuidado de uma irmã severa de quem aquele senhor era amigo, lhe dizia: Rapaz, sê reconhecido a quem te educa manualmente. O meu pai ria-se sempre que dizia isto e várias vezes o ouvi repetir a frase ao meu filho, meio a sério, meio a brincar, dando a entender que ele também precisava de "educação manual" !
Assim, não é por acaso que os únicos livros que tenho comigo encadernados pelo meu pai - entre as várias dezenas que ele durante algum tempo se dedicou a encadernar nas horas vagas - sejam estes três romances de Dickens que me foram oferecidos na adolescência.


Não me lembro já da ordem por que li as restantes obras, mas sei que delirei com o hilariante Sr Pickwick, emocionei-me com os episódios da vida de Pip e os amores e desamores de David Copperfield, irritei-me com personagens secundárias de traços muito marcados como o "humilde" Huriah Heep, depois de ter travado conhecimento com a galeria de marginais de uma Londres pobre e sórdida em cuja rede caiu o pobre e inocente Oliver Twist.


Com "Tempos Difíceis" apercebi-me da miséria em que viviam os trabalhadores fabris da potência industrial que era a Inglaterra vitoriana, das injustiças e da arbitrariedade com que eram tratados pelos seus empregadores, que Dickens critica à sua maneira, nunca panfletária, caricaturando-os através de uma caraterização cheia de tiques, atitudes ridículas e afirmações descabidas. Também é muito caraterístico do modo como trata as suas personagens, sobretudo as que deseja pôr a ridículo, a maneira como falam e as expressões repetidas que usam. 
Apeteceu-me  agora relê-lo, não só pela evocação de Charles Dickens, mas também pelos tempos difíceis que estamos a atravessar, em que, de novo e sempre, "quem se lixa é o mexilhão"...

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Tendo também lido a Loja de Antiguidades,  não guardo grande memória desse romance. No entanto, quem sabe se esse título não terá contribuido para introduzir em mim o bichinho das velharias, já que loja de antiguidades era algo que não existia nas localidades onde vivi na infância e adolescência  (pelo menos até aos meus 15 anos).
Claro que tendo "devorado" estas obras quando ainda dava os primeiros passos na aprendizagem do inglês, foram lidas  em português - nem nesse tempo tínhamos fácil acesso a edições originais - e embora já tenha voltado a ler em inglês extratos que me marcaram mais ou que abordei nas minhas aulas, por exemplo para ilustrar aspetos da Revolução Industrial, nunca me dispus a reler qualquer delas integralmente no original. Ainda estou muito a tempo, claro, e foi para isso que comprei o Oliver Twist e o David Copperfield que já mostrei no outro post.


Esta minha edição inglesa do Oliver Twist saiu numa edição popular das Obras Completas de Charles Dickens, em 1907, mas este exemplar resultou de uma reimpressão em 1913.

As únicas páginas ilustradas desta edição
Encontrei-o cá em Portugal numa pequena loja de livros usados em Coimbra, ao contrário do David Copperfield, também comprado numa loja de artigos usados, mas desta vez em Brighton, na costa sul de Inglaterra. Foi numa viagem  de comboio de ida e volta no mesmo dia a partir de Londres e no regresso, para castigo,  lá vim a carregar com este alfarrábio enorme que, com as suas 20 belíssimas ilustrações a cores, por apenas 5£, eu não  podia deixar ficar para trás...

David Copperfield e o Sr. Micawber na página de rosto

Acho as ilustrações de Frank Reynolds maravilhosas e a forma como foram introduzidas no livro, como era hábito na época em que foi publicado (c. 1911), muito curiosa. As estampas, em folhas soltas, foram coladas sobre páginas em branco e cobertas por papel vegetal onde foi impresso um pequeno texto e/ou uma legenda, como se vê na foto em baixo.


 The friendly waiter

Uriah Heep

Mr Micawber in his element 
Sempre lamentei o facto de Dickens não ter feito parte dos programas das três cadeiras de Literatura Inglesa que tive na faculdade, programas esses que se desenvolveram desde épocas muito recuadas da literatura anglo-saxónica até, felizmente, Shakespeare, mas daí, infelizmente, não passámos...

4 comentários:

  1. Os personagens da minha juventude!
    Trouxe-me de volta ao tempo em que passava as tórridas tardes debaixo do telhado que cobria a varanda, que rodeava a casa, onde, de vez em quando, corria, envergonhada, alguma leve brisa.
    Aí estava eu, lendo, perdido do mundo, espalhado numa esteira, deitado numa rede feita em tecido de lona, colorido e riscado, de algodão, esticada entre dois pilares, ou encolhido numa cadeira articulada, de deck, feita em chanfuta ou então em frescas cadeiras de verga pintadas de um branco marfim, mas que me deixavam a pele toda marcada!
    Também não havia muito mais para fazer nestas longas tardes lânguidas de preguiça.
    E eu lia enquanto todo o resto do meu mundo estava a dormir a sesta ou beberricando um chá, normalmente gelado, aromatizado com limão, num qualquer salão ventilado por ventoinhas penduradas do teto.
    Recordo com saudade estes tempos, os únicos em que me sentia livre de quaisquer cuidados, perdido do tempo, pois alguém tomava cuidado de mim.
    Eu lia e não percebia muito o que Dickens descrevia, habitante que era de paragens equatoriais, mas isso excitava a minha imaginação e fazia-me viajar. Tudo o que Dickens escrevia era-me muito exótico ... mal sabia eu que, hoje, para mim, exóticos eram os meus locais de então! É tudo relativo!
    Li algum Dickens no original, outro em traduções, mas sempre com muito prazer.
    Obrigado pela viagem
    Manel

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    1. Manel, o ambiente em que passou a sua juventude foi muito diferente do meu, mas pelos vistos as companhias foram as mesmas... :)
      Eu vivia nessa altura numa pequena cidade da Beira Alta, escura e fria no inverno, com mentalidades ainda muito fechadas, por isso não me sentia assim tão distante das vivências vitorianas dos romances de Dickens.
      É verdade que este e outros autores nos permitiam fazer viagens extraordinárias em que durante dias ou semanas partíamos para outros mundos e convivíamos com personagens fabulosas e por isso eu sentia sempre muita pena de chegar ao fim da história, mas logo procurava outra para nova partida, nova viagem...
      Belos tempos... mas agora também não me posso queixar...
      Um abraço

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  2. Gostei muito deste seu post mais pessoal, acerca das leituras que a marcaram na adolescência. De facto, a leitura permite-nos escapar a mundos fechados e viajar para longe, abrindo a alma e viver experiências de outras pessoas, assimilando-as como se fossem nossas. A Maria Andrade cresceu numa acanhada cidade da beira e eu num bairro mesquinho lisboeta e a leitura foi para ambos um meio de sair dali, ainda que só intelectualmente.

    A Yourcenar quando escreveu na sua juventude o Alexis foi acusada pelos críticos de ter recebido influências do Corydon de Andre Gide. Recusou sempre a ideia de ter sido influênciada por Gide, pela simples razão que durante a sua adolescência e início da juventude lia os livros da biblioteca do seu pai, isto é os autores que estavam em voga na geração anterior ou os clássicos e nunca os contemporâneos. Também se passou um pouco isso comigo e julgo que neste post descreve uma situação semelhante.

    beijos

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    1. Pois é, Luís, era quase inevitável que a nossa iniciação à leitura mais séria(minha e de gerações anteriores) se fizesse com o que tínhamos à mão, no caso de haver livros em casa.
      Comigo houve muita orientação paterna nas primeiras escolhas e os autores ingleses predominaram nelas. Estou convencida que foi isso que determinou muito o meu gosto pelo inglês e a minha opção por Germânicas...
      Na altura, os cursos de Letras eram tão bons como quaisquer outros, não havia esta hierarquização e este desprezo pelas Humanidades que se nota agora.
      E como o mundo tem necessidade de as valorizar!
      Enfim, sem mais palavras...
      Beijos

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