domingo, 4 de novembro de 2012

Frontais de altar do Buçaco



Aqui, bem perto de mim, a dominar toda a Bairrada, há um lugar muito aprazível em qualquer época do ano, onde se passam tardes, dias, bem agradáveis: a Mata do Buçaco!
Ali se concentra um valioso património natural, histórico e artístico, nem sempre devidamente valorizado e acautelado, que vale a pena conhecer.
Data do século XVII (c. 1623) a fixação naquele "deserto" de uma congregação de Carmelitas Descalços, que logo procederam à edificação, não só do seu humilde convento, mas também de fontes, ermidas e capelas, enquanto iam plantando árvores por toda a mata, muitas espécies exóticas, e conservando as autóctones, como o aderno - segundo reza a publicidade, encontra-se ali o maior adernal da Europa.

A entrada do Convento de Santa Cruz do Buçaco
Do pequeno convento, onde Wellington pernoitou antes da Batalha do Buçaco, sobra apenas a igreja, o claustro e algumas celas, já que as restantes dependências foram destruídas no final do século XIX para dar lugar ao Palace Hotel do Buçaco. No entanto, a maioria das restantes  pequenas edificações construídas pelos frades pode-se ainda encontrar se nos perdermos pelos caminhos do recinto murado da Mata, algumas infelizmente pouco cuidadas e até vandalizadas.
Já há muitos anos que não entrava no convento, mas recentemente fui rever os tesouros que  ali se guardam: uma Nossa Senhora do Leite de Josefa de Óbidos e vários frontais de altar do século XVII.



O primeiro frontal que se encontra à entrada do convento está devidamente identificado e datado, com o seguinte texto a encimá-lo: "Frontal do altar da antiga Capela da Encarnação (Bussaco) azulejos de Lisboa cerca 1640"
Apresenta uma ornamentação de motivos entrelaçados, não muito comum no Buçaco, com policromia nos tons de azul e amarelo típicos da azulejaria do século XVII.


Pessoalmente, prefiro os que se encontram nos quatro cantos do claustro, frontais de ramagens  encimados por pinturas representando a cruz com coroa de espinhos e jarras com flores, na verdade pequenos altares em trompe l'oeil.
É notável esta reprodução em pintura azulejar dos riquíssimos panos bordados do oriente, a que não faltavam franjas, cordões e rendas. A influência do oriente é notória nos motivos de vegetação exuberante e aves exóticas enquadrando cartela com as armas da ordem dos Carmelitas.




Saliento aqui os vários "panos" do painel: para além do pano central, vê-se a sanefa com franja e os dois sebastos, as partes laterais, tudo rematado com as cantoneiras de rendas.




Encontrei esta terminologia específica na obra "Azulejaria em Portugal no século XVII" de Santos Simões, uma obra incontornável para quem se interessa por azulejaria antiga e que faz referência a vários destes painéis.


Está já neste estado um painel de pano damascado recuperado de uma das capelas da mata e aplicado num pátio interior do convento. Estando a céu aberto, talvez tenha ficado assim incompleto por ação de intempéries que terão feito cair azulejos. Se o intuito foi preservá-lo, não foi obviamente bem sucedido esse propósito.


E finalmente mostro o painel meu preferido, o mais espetacular, o frontal do altar da pequena igreja do convento. Não só são mais ricos os motivos em amarelo dourado da sanefa e dos sebastos, mas o pano central apresenta uma proliferação de motivos vegetais e animais - aves e insetos nos planos superiores e animais terrestres na base. E novamente as cantoneiras de rendas a rematar o conjunto.
De repente, numa pequena capela anexa à igreja, deparamos com esta pintura de Josefa de Óbidos.


O espaço é exíguo, está repleto de ex-votos maioritariamente em cera, pelo que foi difícil de fotografar. Mas é uma delícia de contemplar, esta Nossa Senhora do Leite, com a presença de S. José, e por isso também chamada uma Sagrada Família.
Voltando aos azulejos, quem sabe se nas dependências do convento que foram destruídas - o refeitório ou a sala do capítulo, que deveria ter - haveria outros frontais de altar do século XVII, que foram postos a salvo?
A verdade é que há frontais deste género no Museu Nacional do Azulejo e um tem  como proveniência "Convento Carmelita, região de Coimbra". Quanto aos do Museu Machado de Castro, são também de um convento carmelita, mas bem identificado, da Vila de Pereira ou Pereira do Campo.

Frontal de altar do Museu Nacional do Azulejo com as armas dos Carmelitas
Um outro património interessante do Buçaco são os revestimentos a embrechados, que se vêem  na fotografia da entrada do convento, mas esse é um tema que poderá ficar para outras núpcias...




12 comentários:

  1. Olá Maria
    São lindíssimos os frontais de altar que nos mostra. Para mim, é particularmente apelativo o último,pelo contraste das cores - o amarelo e os azuis -, pelo esquema organizativo da decoração, pela chamada aos têxteis bordados e pelo pequeno friso de animais no fundo, alguns imaginários, como é o unicórnio, tão do gosto dos poetas e contistas medievais.
    Um abraço
    if

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá IF,
      Fico muito satisfeita por ter gostado de ver estes painéis do Buçaco.
      Quanto ao unicórnio, sendo um ser mitológico, surpreendeu-me a presença dele neste friso de animais reais como o veado, a lebre e a cabra, mas depois também me ocorreu o seu significado religioso, associado a Cristo e à virgindade de Maria. Vi na Escócia um conjunto de tapeçarias cujo tema era a caça e morte do unicórnio, representando simbolicamente a paixão e morte de Cristo.
      Obrigada pelo rico comentário e pelas memórias que me suscitou.
      Um abraço também para si

      Eliminar
  2. Maria Andrade

    Só agora aqui vim, porque o meu computador em casa continua com o teclado estragado. Entornei um copo de leite em cima dele e e o resultado foi que as tecla V e a barra de espaços ficaram estragadas!!!

    A azulejaria que mostrou é luxuosa. Adorei o pormenor das cantoneiras de rendas, que me recordam os pratos de faiança da mesma época. Nunca tinha visto nenhuns azulejos com essas rendas, mas a azulejaria portuguesa é uma surpresa contínua.

    O quadro da Josefa valeu também a pena. A ternura e o intimismo das suas telas são uma coisa muito portuguesa. Para mim, a Josefa representa uma certa cultura conventual muito feminina, a mesma que se dedicava a fazer fatinhos para o Menino Jesus. Aliás a Josefa de Óbidos também pintou uns meninos Jesus e S. joões Baptistas, que quase parecem uns rapazinhos eunucos de alguma corte degenerada, de tão enfeitados que estão com rendas, transparências e lacinhos.

    beijos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois é, Luís, os computadores são eletro-domésticos muito sensíveis! Se fosse o fogão, o micro-ondas ou a máquina de lavar, iam-se lá importar que lhes despejasse um copo de leite em cima! :)
      Quanto aos frontais com as cantoneiras de rendas, também não me lembro de as ter visto em mais nenhum. Os do Museu Machado de Castro têm panos, sebastos e sanefas parecidos com estes, mas nada de rendas. Resta saber onde esta decoração apareceu primeiro, se na faiança, se na azulejaria.
      E falando dos Meninos Jesus da Josefa de Óbidos, ainda me lembro dos que mostrou no seu blogue, vestidos com umas transparências muito atrevidotas.
      Se fosse agora, ainda acusavam a Josefa de Óbidos de incentivar a pedofilia!!!
      Beijos

      Eliminar
    2. Afinal, Luís, também há um frontal de altar com rendas no Museu do Azulejo. Estive a rever umas fotos e encontrei-o lá. Depois confirmei nas coleções do museu, tem o nº de inventário 132 Az.

      Eliminar
  3. Só pela Josefa já teria valido a pena este post, pois é de um intimismo, que, parece-me, é mais comum à pintura feminina, apesar de o dizer sem propriedade. É algo que, por vezes, lemos em publicações, nos textos escritos para exposições e mostras de arte, mas é um facto que nunca vi provado de forma inequívoca.
    Mas a intimidade está lá, o cromatismo rico e denotando algum claro-escuro, como que nos convidando, ao contrário de Vermeer, a que nos juntemos à cena.
    Quanto à azulejaria, é exuberante e rica, com uma diversidade que faz jus à nossa tradição.
    A decoração de rendas, tal como o Luís, confesso que só tinha visto na faiança. Mas, nestes frontais, fica ainda mais adequado, pois imita as rendas que era, e continua a ser, hábito colocar-se sobre os altares.
    Não consigo deixar de notar que, no último frontal, o motivo é feito a partir de 20 azulejos!
    Segundo a obra "Tapetes Cerâmicos em Portugal" (O azulejo do século XVI ao XX), no século XVII, os motivos poderiam ser constituídos com módulos de 2x2 até ... 12x12 azulejos! Fico sempre pasmado e fascinado com estes números, e não é para admirar que estes azulejos (tal como os historiados e semelhantes) fossem numerados no verso para permitir a sua instalação sem falhas.
    Quero agradecer-lhe esta pequena mostra, uma embaixada requintada, também dirigida a outros povos e tradições.
    Uma boa semana
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Manel,
      A Josefa de Óbidos consegue encantar-nos sempre! Acredito que há aqui um olhar feminino sobre as coisas, que a mim pessoalmente me atrai. E neste caso até a moldura acho encantadora.
      Temos realmente um património único em azulejaria e este do Buçaco merece ser conhecido. Há lá mais frontais de altar, mas não consegui fazer fotos de jeito e vale a pena é vê-los todos ao vivo.
      As rendas nestes frontais têm de facto muito a ver com o hábito de usar panos de renda sobre os altares. E por isso, tem mais lógica que surgissem primeiro neste tipo de azulejaria e só depois passassem para a faiança, não acha?
      Quanto ao pormenor de o motivo ser feito a partir de 20 azulejos, a mim parece-me que é de 40, senão não ficaria "em espelho", ou será que estou a ver mal a coisa?
      A Fundação Mata do Buçaco tem feito ali um bom trabalho: já há visitas guiadas ao convento, têm um programa de atividades na Mata, há uma lojinha de produtos locais e há equipas de reclusos de Coimbra que vêm diariamente limpar, replantar, enfim cuidar da parte florestal.
      Aquele espaço bem explorado, com dinheiro para recuperar todo o património edificado, sobretudo religioso, pode ser uma atração turística de primeira! Eu tenho esperança de ter dado a conhecer um pouco deste lugar a mais umas dezenas de estrangeiros, a avaliar pelas visualizações que tenho tido...
      Obrigada e um bom resto de semana.

      Eliminar
    2. Em relação ao último painel, tem razão, Manel, eu estava a ver mal a coisa. O motivo realmente apanha 20 azulejos e depois é reproduzido em espelho para formar o pano. Eu é que estava a pensar em motivo como o desenho completo.

      Eliminar
    3. Maria Andrade, eu é que me enganei, pois estava a referir-me à fotografia que compõe o seu primeiro pano de altar, o qual, pareceu-me antes, seria o último.
      Confusões minhas.
      Mas creio que, em relação ao último pano da altar, terá razão em considerar que seria construído com 40 azulejos, pois o padrão seria constituído pelo motivo, adicionado igualmente da sua imagem refletida em espelho. Creio que é assim que se contam os azulejos.
      Mas não tenho certeza absoluta, só aquilo que vou lendo nas publicações, o que nem sempre me parece fidedigno. Sou pouco assertivo nestes campos que não domino, e onde, por isso, não estou à vontade para ter certezas.
      Ainda, e quanto ao último pano de azulejos, nem sei se será possível chamar à decoração que ostenta como padrão, pois representa as armas dos carmelitas, o que não faria dele um motivo para ser repetido até ao infinito, isto é, poderia, mas não faria muito sentido, neste contexto.
      Quanto ao primeiro pano, representa um motivo geometrizado, passível de se repetir, facto que não sairia fora do contexto de preenchimento de espaço.
      Desculpe as minhas confusões disléxicas
      Manel

      Eliminar
    4. Olhe, Manel, não tenho em casa a obra de Santos Simões que referi no post, mas penso que nestes frontais só os panos damascados são de padrão. O primeiro parece-me de 4x5 e o quinto de 3x3.
      Confusões todos nós fazemos, mas o facto de não dominarmos estes pormenores técnicos, por muito interessantes que sejam, não nos impede de nos perdermos na contemplação destas belezas e lhes darmos o devido valor.
      Um abraço

      Eliminar
  4. Olá Maria Andrade,
    Perdão se não havia me manifestado aqui antes, mas estas duas últimas semanas foram um inferno por razões de trabalho. Mal tive tempo para respirar. Até havia visto o belo post, e naturalmente embasbacado com os magníficos azulejos de tapete que você compartilhou conosco, mas não queria comentar apenas para constar, o tempo passou, passou...
    Acho que jamais vou me cansar do traço dos artesãos portugueses que pintaram azulejos por tantos séculos! É tão solto, fluido, seguro, e até mesmo, divertido. Por mais que provavelmente as condições de trabalho nas oficinas fossem pesadas, certamente trabalhavam 10, 12 ou mais horas, o ar final dos painéis é de algo feito com extremo amor e dedicação, algo feito com muito prazer e orgulho.
    b'jinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Compreendo, Fábio, que havendo obrigações, nem sempre há tempo para dedicar a estas "devoções".
      Ainda bem que gostou do post e de mais esta amostra da arte azulejar portuguesa.
      Eu adoro estes frontais, com os panos, as sanefas, as rendas, mas sobretudo os panos de ramagens.
      Obrigada pela visita e pelo comentário.
      Um abraço

      Eliminar