domingo, 19 de maio de 2013

Dia dos Museus em duas Casas-Museu

É verdade, foi um dia em cheio!
De manhã a visita à recentemente remodelada - reabriu em Janeiro - Casa-Museu Egas Moniz em Avanca, onde já tinha estado por duas vezes, mas onde não me canso de voltar; de tarde a ida a Ovar para visitar a Casa-Museu Júlio Dinis, também com remodelação e reabertura recentes, desta vez para mim uma estreia.


Casa-Museu Júlio Dinis
São dois espaços totalmente diferentes. O primeiro, um belo palacete do início do século XX, intimamente ligado à vida e obra do nosso Nobel da Medicina, uma casa de família, embora destinada a férias, bem vivenciada e repleta de objetos pessoais e coleções reunidas pelo casal. Dela falarei com mais pormenor em outra ocasião. 
Quanto ao segundo, uma típica casa vareira de rés-do-chão transformada num espaço cultural, mantendo três das pequenas divisões originais devidamente mobiladas, foi destinado a perpetuar a memória de uma estada breve em Ovar do médico e escritor Joaquim Guilherme Gomes Coelho(1839-1870) que todos conhecemos por Júlio Dinis, nascido e residente no Porto.



Sendo espaços diferentes, estão ligados não só pela curta distância entre as duas localidades, mas também pelo facto de o médico e cientista Egas Moniz ser considerado o primeiro dinisiano, tendo publicado Júlio Denis e a sua Obra, Lisboa, Casa Ventura Abrantes, 1924.
Foram cerca de três meses, há precisamente 150 anos,  que Júlio Dinis passou nesta casa de familiares, em período de tratamento da tuberculose que o iria vitimar prematuramente aos 31 anos. Foi ali que observou a vida das gentes do povo, os seus hábitos, as ambições de alguns, os trajares e falares, que lhe serviriam de inspiração para os  romances campesinos que escreveu a seguir, particularmente As Pupilas do Senhor Reitor, cuja escrita iniciou naquele período.

O conjunto de material informativo preparado para os visitantes
A remodelação do edifício não se fez sem polémica. Sendo uma  casa de lavradores do século XIX já rara em Ovar, pequena como era, mas com um grande pátio e terreno nas traseiras - a fazer jus ao ditado "casa onde caibas, terra que não saibas"- foi ali construído um novo edifício ligado à casa, onde foi instalado um moderno auditório e outras dependências, ocupando uma grande área do pátio...  e lá se foi um espaço importante de uma casa de memórias...



Terá sido esse pátio, fulcro das atividades da lavoura, para onde se abria a cozinha da casa,  que permitiu ao  escritor tomar contacto com os jornaleiros e outros trabalhadores ao serviço desta Casa dos Campos, ouvindo os seus relatos aos donos da casa sobre o dia de trabalho, por vezes sem ser notado e tomando notas, enquanto se ia inspirando para a construção de personagens. Mas também fazia passeios pelo campo, observava as lavadeiras nos ribeiros ou os bandos de raparigas que regressavam do trabalho a cantar. Outras pessoas que conheceu na altura, como o médico local, serviram de modelo a descrições realistas de figuras como o inesquecível João Semana.



Estranhamente, ou talvez não, só encontrei cá em casa um exemplar das obras de Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, que reli recentemente, o que significa que também eu embarquei na onda de esquecimento geral a que este escritor injustamente tem sido votado... como Aquilino, Castilho, Herculano, Junqueiro...  Tomei contacto com Júlio Dinis, como quase todos da minha geração, na adolescência,  ainda na casa paterna, sendo de lá o exemplar que hoje fotografei e aqui mostro, encadernado pelo meu pai, mas mantendo-lhe a capa original.


Muitos consideram estes romances leitura ligeira, muito bucólica e cor-de-rosa, mas não deixam de ser testemunhos de uma época e de um estilo de vida já desaparecido, cuja dureza era compensada pela abundância proporcionada por terras férteis e pelo sol sempre presente em época de verão, a convidar a festejos e a rituais de namoro, mesmo durante as tarefas agrícolas.   São romances de história simples mas bem construídos e com grande riqueza de personagens que permitiriam  fazer ainda cedo no percurso escolar a iniciação ao romance. Mas permitem também mais de um plano de leitura, apresentando motivos de interesse para diferentes tipos de leitores.

A Clara, de José Malhoa, Museu do Chiado
Na narrativa de As Pupilas do Senhor Reitor existe  análise e crítica social na caraterização do ambiente rural de meados do século XIX e na denúncia de certos comportamentos de tipos populares, como as beatas...; há reflexos das discussões sérias do momento nas reações dos aldeãos aos ecos que lhes chegavam das teorias evolucionistas de Darwin; há tratamento psicológico das personagens e talvez as primeiras descrições realistas no romance português, havendo quem considere Júlio Dinis próximo do naturalismo de Zola.
Este romance de génese ovarense poderá ter contra si o sucesso da versão cinematográfica de Leitão de Barros, conotado com o Estado Novo, o que leva por vezes à associação anacrónica desta obra literária com esses tempos de má memória...

8 comentários:

  1. Maria Andrade não faz ideia dos sentimentos que me despertaram a leitura da primeira noite de Henrique de Souselas na casa da sua tia Doroteia, quando li pela primeira vez a Morgadinha.
    Vivia em África na altura, e nada daquilo fazia sentido no ambiente em que me movia, daí o forte impacto que em mim produziu.
    Depois, bastante mais tarde, vim a conhecer ao vivo, já em casa da minha avó, aquela sensação de frescura dos leçóis rígidos, de engomados, numa cama cujo colchão não era de molas, mas daqueles à antiga, manufaturados, iluminado com candeia de azeite/candeeiro de petróleo, e a recomendação de não deixar a luz acesa, não fosse cair ou acontecer qualquer outra desgraça e resultar num fogo.
    O sono reconfortante, quase sem ruídos noturnos, o acordar de mistura com os sons rurais, de um carro de bois a passar na rua, com o sol a espreitar por entre as pesadas portadas. Aí percebi um pouco melhor a vida rural que ainda sobrevivia naqueles finais dos anos sessenta, mas que rápido terminou.
    Hoje é um local como qualquer outro, com a desgraça de não ser nem uma aldeia rural nem uma lugar urbano. Hoje em dia não é nada. Passou a local sem sensabor, banal, incaraterístico e até mesmo feio!
    Perdeu o encanto de antanho e não ganhou nada do urbanismo contemporâneo.

    As casas que, nos finais dos 60, ainda eram de adobe ou pedra, com espessas paredes isolantes, entrada com a sala oficial, raro utilizada, na qual desaguavam quartos pequenos, confortáveis e aconchegantes, soalhos de tábua corrida, forros de tábuas encaixadas, do tipo saia e camisa, com as típicas camas de ferro pintado, e, lá no fundo da casa, onde realmente se vivia, grandes cozinhas com mesa ao centro, daquelas com volumoso gavetão onde se guardava tudo, até a broa (que durava uma semana), com chaminé de fumeiro ao canto, com um moirão (tronco em madeira) que sustentava a estrutura tronco-cónica, para a qual (como em minha casa) dava o forno do pão e do anho ou capão assados, que, não se encontrando aqui, estaria muito próximo deste espaço; palheiros triangulares no quintal, eiras para o cereal, cómodos para os animais, que, não raro, se encontravam por debaixo da casa, permitindo o aquecimento natural do espaço de habitação, a nível superior, o qual passava pelo espaço entre as tábuas do soalho.
    Talvez não fosse muito cheiroso, mas que se poupava muito em aquecimento, lá isso poupava, e a economia afinal era, afinal, baseada numa simbiose entre o homem e a natureza.
    Este ainda era o resquício do mundo que se vivia em Júlio Dinis, ainda que à distância de um século.
    Aliás, foi com este romance que entendi melhor o movimento de insurretos que se denominou de Maria da Fonte. Assim como o caciquismo, que perdurou durante mais um século, o qual continuava a ser prática corrente na época de Salazar.

    Nos dias de hoje, do mundo rural que conheci, restam, entre muitas outras variedades igualmente aberrantes, informes "maisons" amansardadas que, numa dezena de anos, se transformarão em casas de bairro da lata, com a inconveniência de fazerem péssimas ruínas.
    Peço desculpa pelo tom menos positivo da última parte, mas este tipo de situação construtiva neste país coloca-me sempre
    fora de mim e com vontade de fugir.
    Mas já não sei bem para onde fugir se estes atentados também começarem a invadir o Alentejo (que já tem alguns indícios, felizmente menos significativos)
    Uma boa temana para vós
    Manel

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  2. Que belo relato aqui fez das suas vivências de infância em casa da sua avó, amigo Manel!
    Tem graça que essas caraterísticas que descreve da casa rural - com sala de entrada e pequenos quartos interiores, tipo celas, que davam para a sala - também subsiste na casa Júlio Dinis, uma casa vareira, como existia nas típicas casas bairradinas que conheci da família do meu marido,casas de rés-do-chão, de adobes, relativamente pequenas mas com grandes pátios nas traseiras, para onde dava a cozinha.
    Eu não tenho essas recordações do mundo rural porque todos os meus avós viviam na vila, embora os maternos tivessem vindo de uma aldeia próxima e houvesse lá familiares; depois, ainda criança, andei em itinerância com os meus pais por Portugal continental e ilhas, sempre em vilas ou cidades, completamente desenraizada à chegada, mas acabou por ser um acumular de experiências enriquecedoras.
    Obrigada por esta escrita tão interessante e inspirada.
    Um abraço e votos de boa semana de trabalho.

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    1. Ao reler o meu comentário, o que deveria ter feito na altura certa :-(, dei conta de algumas gralhas, mas ... nada a fazer. O "sem sensabor" escapou, mas para a próxima espero que não escape.
      Agradeço a sua resposta, sempre tão simpática
      Manel

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    2. Olhe, Manel, acho inevitável que surjam estas gralhas, sobretudo quando escrevemos textos longos ao fluir do pensamento, como é aqui o caso, e à vezes, mesmo quando se relê o texto, não se detetam. Acontece-me só dar por elas dias ou meses depois e se é no texto de um post ainda as posso emendar, mas se é num comentário já nada há a fazer.
      Enfim, inevitabilidades da blogosfera com que não temos de nos preocupar muito...

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  3. A casa é muito bonita na sua simplicidade.

    Confesso que só li Júlio Dinis no Liceu, porque era uma obra obrigatória. Li a família inglesa, mas na época não me disse nada. Aos 16 anos não encontrei nada em comum entre o meu mundo e o que era descrito naquele romance. Talvez se o tivesse lido hoje, teria encontrado pormenores históricos, interessantes para perceber o século XIX português, uma época que até gosto.

    Hoje, tenho tanta coisa para ler, para conhecer e estudar que duvide que me resolva a ler as restantes obras de Júlio Dinis, embora há uns tempos tenha passado na tv uma série portuguesa com base num romance do Júlio Dinis e até tenha visto algum episódio com agrado. Mas, decididamente, o tempo escasseia e o Júlio Dinis ficará para a reforma, lá para os 70 anos, se ainda tiver vista e saúde mental, bem entendido.

    Bjos

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    1. Pois é, Luís, a casa é bonita e muito interessante por dentro, uma casa rural à moda antiga, por isso não imagina a minha frustração quando percebi que não podia tirar fotografias porque tinha ficado sem bateria na máquina. Já pedi algumas a uma amiga que as tirou com telemóvel, mas só vou aqui acrescentar três, havendo mais recantos para mim muito fotogénicos, por exemplo com faianças do Cavaquinho:(
      Quanto às obras de Júlio Dinis, acho que lhe podemos encontrar mais encanto agora do que quando andávamos no liceu, mas realmente há tanta coisa para ler...
      Sobre a reforma aos 70 anos... não exageremos! Há que ser otimistas sobre isso e outras coisas senão estamos tramados.
      Beijos

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  4. O tempo leva muita coisa: boa e má. Metade da obra de Júlio Dinis herdei-a da pequeníssima (cerca de 50 livros) biblioteca de meu Pai.
    Os programas de ensino são em grande parte responsáveis por estes apagamentos.
    Gostei muito da sua evocação, Maria.

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    1. Caro APS,
      Também está tudo em casa do meu pai da obra de Júlio Dinis e nunca me dispus a comprar mais nenhum exemplar à exceção de "Uma Família Inglesa", é só recorrer à casa paterna...
      Concordo consigo que há autores da nossa literatura que não deviam ser apagados dos programas, sobretudo obras menos longas que motivassem os alunos (de hoje) a ler mesmo a obra em vez de se limitarem aos resumos...
      Muito obrigada pela visita.

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