Trata-se de faiança inglesa, como suspeitei imediatamente pelo formato e decoração e confirmei logo a seguir pela marca. Não apresentava nome de fabricante, mas as palavras Indian Ironstone, sob um brasão com símbolos reais e um lema em latim, foram suficientes para lhe perceber o fabrico inglês.
Ao chegar a casa, começou o desafio para identificar o fabricante e determinar a época de fabrico, a parte aliciante para mim da compra deste tipo de velharias.
Descobri logo na internet ser Auspicio Regis et Senatus Angliae (À Ordem do Rei e Parlamento de Inglaterra) o lema ou motto da Companhia das Índias Inglesa, o que me deixou um tanto perplexa; e logo fui encontrar os mesmos símbolos do meu prato, usados como seus atributos.
Com essas armas e lema esperaria encontrar uma peça de porcelana armoriada de fabrico chinês, dos milhares de peças importadas pela Europa via Companhias das Índias, mas não um caseiro prato coberto fabricado em Inglaterra, numa pasta de faiança muito usada no século XIX que pela robustez e durabilidade os fabricantes ingleses de Staffordshire apelidaram de "ironstone", também conhecida por semi-porcelana ou porcelana opaca.
Ainda pensei que podia ter sido uma encomenda feita a um desses fabricantes para os escritórios da Companhia em Londres, mas não me parecia fazer sentido a localização da marca - no tardoz da peça e não em lugar de destaque como sinal de pertença, tal como se vê na seguinte peça de porcelana à venda na internet.
A Companhia das Índias Orientais inglesa foi criada para o comércio com o Oriente no ano de 1600, no reinado de Isabel I, mas a sua existência prolongou-se até ao final do século XIX, nessa altura já uma sombra do que tinha sido, pelo que podia datar do período mais tardio a encomenda desta loiça.
Nestas voltas e conjeturas andei algum tempo até que - Eureka! - encontrei, mais uma vez na santa internet, uma peça com a mesma marca, mas com uma outra gravada na pasta que desfez parte do mistério: Alcock's Indian Ironstone.
O apelido Alcock aparece ligado à produção cerâmica em Cobridge, Staffordshire, desde 1828, mas foi no período de John & George Alcock, ou seja, 1839-1846, que esta marca com o conhecido lema foi usada.
Assim fiquei a saber qual foi o fabricante do meu prato coberto e qual a época de fabrico, apenas permanece o mistério de saber como lhe foi permitido marcar os seus produtos com um símbolo tão conhecido e prestigiado como foi o da British East India Company.
O motivo é nitidamente de influência oriental a lembrar as decorações Imari inglesas, com pintura policromada à mão sobre desenho estampado a cinzento pelo processo de transfer printing. Nos ramos com flores e folhagens aparecem, de onde em onde, uns elegantes faisões que para mim constituem um pormenor interessante desta decoração.
Ocorreu-me entretanto, já depois de publicar este post, pela presença na marca das palavras Indian Ironstone, que as peças assim marcadas pela Alcock se poderiam destinar à exportação para os territórios indianos que na época ainda estavam sob o controle da Companhia das Índias inglesa. Apesar de ser apenas uma conjetura, parece-me esta a explicação mais lógica.
Sendo, como sou, um leigo na matéria, gostei da peça e do seu poste pelo crescendo narrativo da descoberta e identificação. Com um ritmo de quase romance policial...
ResponderEliminarBoa noite, Maria!
Caro APS,
ResponderEliminarSei bem que esta não é a sua "praia" e por isso fico muito satisfeita quando o encontro por aqui em visita.
É precisamente este lado da descoberta, da caça ao tesouro, da interpretação e confirmação de pistas, quase um trabalho detetivesco, que torna tão interessante este mundo das velharias.
Uma boa noite também para si.
Olá Maria!
ResponderEliminarAfinal, não é só o Manel que consegue peças óptimas, pois pelos vistos a Maria nesse dia teve aquilo que se costuma chamar de "olhão"!
A peça é uma maravilha, e só mesmo alguém que nada percebe do assunto poderia ficar indiferente, o que lhe foi decerto favorável para conseguir um preço mais em conta.
Parabéns pelo "achado"!
Quanto aos pormenores mais técnicos e de fabrico, só mesmo um connaisseur.
Para já o que interessa é que tem consigo um prato magnífico!! Agradaram-me sobretudo esses tons de azul com o vermelho, ou castanho avermelhado, dourados. Enfim é uma sinfonia de cores que se conjugam na perfeição. E depois, os relevos ajudam a realçar o conjunto numa harmonia espectacular!
E não há dúvidas de que a net é uma aliada e tanto nestas demandas. Mas a busca de elementos nem sempre é fácil.
Por exemplo, ainda não vai há muito tempo que a propósito de uma chávena que me ficou de herança, escrevi um email para o Museu dos Biscaínhos,mas até à data nada de resposta...
Faço votos para que se consiga desvendar toda a história deste seu prato. Bem merecia que assim acontecesse!
Abraço
Alexandra Roldão
Olá Alexandra,
EliminarQuem se interessa por estas coisas vai acumulando alguns conhecimentos que lhe são úteis na hora de comprar, o que, à mistura com um golpe de sorte de vez em quando, permite fazer uma ou outra boa compra. Esta tertúlia bloguista de que fazem parte o Manel e o Luís também tem contribuído muito para se irem alargando e consolidando conhecimentos em várias áreas das velharias, no meu caso mais virada para a cerâmica. Perdoe-se-me a imodéstia, mas estou convencida que muita gente que passa por estes blogues sem comentar, incluindo vendedores, tem beneficiado das conversas que vamos tendo por aqui e acho isso muito positivo...
Agora fiquei curiosa em relação à sua chávena :) Tem ao menos ideia se é portuguesa ou estrangeira?
Obrigada pelos seus votos para que se desvende o resto da história, mas o principal, fabrico e época, já me satisfaz bastante.
Um abraço e bom fim de semana.
Olá Maria,
ResponderEliminarA chávena em causa era pertença da minha avó paterna, mas ela já vem de outros avoengos. No entanto, ninguém sabe precisar de onde, ou de quem.
O que sei de certeza é que na década de 80, visitei com os meus pais esse Museu, então Casa dos Biscaínhos. Nessa visita, a minha mãe recorda-se de ter visto outra chávena em tudo igual ou semelhante a esta. Na altura achou engraçado, mas não memorizou a sua origem.
Vai daí, tentei a sorte, fazendo uma chamada para o Museu, e colocando a questão. Foram muito atenciosos, e disseram-me para enviar email com a foto da peça, mas até agora, nada!
Inclusive, também fui aborrecer o “nosso” grande connaisseur, Luís Montalvão, que gostou imenso do que viu, identificou algumas outras peças, mas aquela anda mesmo a fazer-se muito rogada. E quando o Luís não conhece, será difícil que outros lá consigam chegar.
Julgo, (opinião de alguém que não detém conhecimentos) tratar-se de algo de origem estrangeira, mas sinceramente não se me afigura ser de origem francesa, talvez mais alemã. Até já cheguei a pensar na Companhia da Índias…
A páginas tantas sou detentora de uma fortuna e não sei…
Resumindo, tenho em casa uma chávena mistério!
Abraço
Alexandra Roldão
Sendo assim, resta-lhe aguardar a resposta do Museu dos Biscainhos ou consultar a coleção de cerâmica desse museu que está acessível no MatrizNet. Mas a avaliar pela informação que eles disponibilizam nas fichas de inventário da cerâmica...
EliminarBoa-noite Maria!
ResponderEliminarAgradeço a dica do MatrizNet mas, e embora não soubesse da existência, aprendi no blog do Luís Montalvão que poderia utilizar esse recurso, coisa que fiz de imediato. No entanto a busca foi infrutífera.
Abraço
Alexandra Roldão
Gosto imenso da sua peça, como não poderia deixar de ser, pois da forma como aprecio a faiança inglesa esta não me poderia deixar indiferente.
ResponderEliminarAs formas de inspiração um pouco rocaille fazem-me lembrar uma terrina que tenho lá pelo Alentejo, se bem que esta tem as curvas e contracurvas menos pronunciadas. E a minha possui o "diamond mark" de 1842-67, mas sem qualquer marca identificativa do fabricante (como já a adquiri há bastante tempo nem sequer me lembro da data de fabrico).
Curiosa a história que aqui desvendou àcerca desta marca a qual está ligada à da Companhia da Índias inglesa! Nunca me tinha passado pela mão uma situação destas.
Muito curioso!
Será que existiam alguns fabricantes que poderiam fazer associar a sua produção a esta prestigiada Companhia e para tal deveriam pagar algum tributo? Ou faziam-no de forma encapotada?
Muito interessante o que descobriu.
E o padrão tem a sua influência oriental muito marcada, facto que nem sequer é transcendente face às ligações comerciais que o Império Britânico detinha na altura.
Quantos padrões ingleses fazem apelo a esta influência orientalizante? Contá-los seria tempo perdido, pois são inúmeros.
Uma boa semana
Manel
Olá Manel,
EliminarTenho estado muito atarefada na publicação do chá desta semana e na ativação dos respetivos links, mas não podia deixar de vir aqui ainda hoje para dois dedos de conversa consigo... :)
Realmente este é um caso talvez raro de utilização do brasão da Companhia das Índias na marcação de loiça de faiança.
E a única explicação que vejo possível é mesmo a da exportação destes serviços para a Índia inglesa, onde a Companhia das Índias deteve durante muito tempo um poder soberano. Não sei se outros fabricantes também exportaram para lá, mas a verdade é que só a firma J.& G. Alcock utilizou o nome comercial "Indian Ironstone" o que devia ser porque essa loiça se destinava ao sub-continente indiano.
Talvez necessitassem de acordos especiais ou de uma autorização da Companhia, mas sobre isso ainda não encontrei nada.
Realmente o Oriente, sempre o Oriente a influenciar as artes dos países europeus, sobretudo, como é natural, os que ali tiveram colónias.
Uma boa semana também para si, espero que sem grandes confusões no ambiente profissional...
Um abraço
Só agora aqui vim. Tenho andado preguiçoso. Por vezes entro em fases um bocadinho anti-sociais e demoro alguns dias a sair delas.
ResponderEliminarApreciei a investigação cuidadosa e prudente que fez. Se fosse como uns e outros que nós conhecemos já estaria aqui a alardear que tinha aqui uma genuína Companhia das Índias...em faiança!
Mas voltando ao que interessa, talvez na segunda metade do séc. XIX, já sua na fase decadente, a Companhia das Índias vendesse a fabricantes de faiança o direito de usar o seu selo?
O seu prato coberto é uma peça com uma sumptuosidade burguesa extraordinária.
Bjos
Luís, sabe como aprecio as suas visitas e comentários, mas compreendo-o e sei que todos nós temos períodos de maior ou menor motivação para os blogues, que afinal só se justificam enquanto nos derem prazer... e sentirmos algum retorno...
ResponderEliminarQuanto a esta peça de faiança inglesa, andei muito tempo intrigada com a marca, mas quando me decidi a fazer a publicação, aos poucos foi-se fazendo alguma luz e penso que a utilização do selo da Companhia está de acordo com o nome do produto "Indian Ironstone" e com o facto de se destinar ao mercado indiano.
Estive a verificar no meu livro de marcas e mais de meia centena de fabricantes de Staffordshire utilizaram as armas reais inglesas, com o leão e o unicórnio, para marcar os seus produtos, certamente com autorização real; o mesmo se terá passado com esta marca em relação à Índia dominada soberanamente pela Companhia das Índias, ainda na primeira metade do séc. XIX, que é de quando data esta peça Alcock (1839-1846).
Obrigada pela visita.
Bjos