sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Mostruário de ponto de cruz


Apesar de toda a vida ter gostado de rendas e bordados - ou não tivesse eu sido iniciada nessas artes na casa materna, como quase todas as raparigas da minha idade - têm aparecido aqui apenas como acessórios, à mesa ou em tabuleiros, quando se trata de celebrar o chá. Também não é o tipo de coisa que em geral cobiço nas feiras de velharias, já que a maioria das peças que por lá aparecem é do género que não me falta em casa, muitas delas saídas das desveladas mãos maternas e algumas mais recuadas. Confesso que muito poucos bordados que guardo são da minha lavra, mas tive a aprendizagem e acompanhei de perto muitos trabalhos...


Como não há regra sem exceção, numa das últimas feiras deste verão na Curia lá me deixei seduzir por este pano bordado, um mostruário de desenhos e algumas letras a ponto de cruz muito miúdo, que, pelo tipo de figuras e pelos tons já descorados das linhas  de seda, me pareceu bastante antigo. Lamentavelmente, não tem uma data a acompanhar as iniciais da autora, MCS, como era usual nestes trabalhos, uma espécie de prova de proficiência na arte de bordar a que eram sujeitas as donzelas que se preparavam para um futuro de  lides domésticas. A estes panos iam depois buscar os motivos com que ornamentavam golas de blusas ou roupa interior, lenços, bibes de crianças ou até as letras para marcar roupa de cama e de mesa...





Adorei os motivos alusivos ao amor, os corações coroados, com duas pombas ou com a corrente a uni-los e respetiva chave, mas também as jarras de flores e sobretudo as figuras femininas com os seus adereços atraíram a minha atenção.
Vi muitos trabalhos destes, os samplers, em programas da BBC sobre antiguidades, em geral datados dos séculos XVII ao XIX, havendo um bom repositório deles, cerca de 700 exemplares, no museu Victoria & Albert, que tem uma página onde faz a sua história. Muitos incluiam todo o abecedário e alguns chegavam a ter poemas ou longos textos a ocupar quase todo o pano.


Dois mostruários do séc. XIX, do V&A, em linho bordado a seda, ambos numa miscelânea de pontos e motivos
Mas também por cá podemos encontrar alguns destes trabalhos musealizados, como é o caso de um pequeno conjunto da coleção de texteis da  Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves,  do "Espólio Silva Porto", de que aqui deixo um interessante exemplar.

Pano bordado a ponto de cruz, do tipo mostruário, datado do séc. XIX
(Casa-Museu Dr.Anastácio Gonçalves)

10 comentários:

  1. Cara Maria Andrade. Parabéns porque a meu ver julgo encontrou nada mais do que um "Lenço dos Namorados" uso nos finais do século XIX até meados do XX , perdura hoje ainda no Minho como artesanato. O meu avô materno que viveu na zona centro no início do séc XX recebeu um lindo lenço bordado a ponto cruz oferta de uma apaixonada -, porque ao tempo assim era o ritual da mulher o bordar e entregar ao eleito como pedido de namoro, o sinal do rapaz aceitar o namoro era logo o pôr ao pescoço. Como hoje ainda é uso nalguns ranchos folclóricos.No caso o dele seria semelhante ao seu, sem versos, apenas a chave, os corações e flores, no dizer da minha mãe que se lembra bem do lenço por ser extraordinariamente belo ao fim de 35 anos após ele o receber, porque nasceu "fora de tempo" como se dizia ao tempo.
    Bjos
    Isabel

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  2. Seja bem-vinda aqui, depois de tanto tempo, M. Isabel!
    Vejo que o bordado a chamou, como mulher amante de rendas e bordados que também é...
    Conheço bem os lenços de namorados, já vi até uma exposição no Museu de Viana com uma boa coleção de exemplares bastante antigos e, sinceramente, não me parece que este pano tenha alguma vez sido um lenço de namorados, nem pela forma nem pelo tamanho. Estes chamam-se mostruários ou panos de amostras. É verdade que alguns dos motivos eram usados nesses lenços ou em roupa de recém-casados, tal como outros podiam ser utilizados noutro tipo de roupa. Em vez de frases amorosas, nestes panos há geralmente letras soltas, muitas vezes o abecedário completo, para que as raparigas/mulheres pudessem usá-las como modelo para marcar a roupa com as iniciais de cada pessoa. Este só tem algumas letras, para além das iniciais da própria bordadeira.
    Agradeço-lhe o comentário com todas as achegas sobre esses bordados tão típicos do Minho, misturadas com uma deliciosa história familiar...
    Um abraço

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  3. Cara Maria Andrade,
    Em primeiro lugar as minhas desculpas por ter andado arredada deste seu blog. Inicialmente por doença de minha mãe, e nos últimos dias por perrice do meu Pc. Não sei porquê, mas sempre que aqui tentava entrar bloqueava tudo e ficava ali a mascar chiclets...
    Agora, e depois de muita briga parece já lhe ter passado a travadinha (esperemos que de vez!).
    Quanto ao seu paninho bordado é uma verdadeira delícia. Isso foi um achado daqueles! Nas feiras bem que deito o olho para as bancas com velhas toalhas e naperons, mas nunca tive a sorte de encontrar nada assim.
    Pelo aparência do pano (linho de tear bem antigo), as cores utilizadas que não são garridas ficando-se pelos cremes, castanhos e verdes, e levando em conta a cor e textura do pedaço de pano, tudo me leva a concordar consigo. Tem todos os jeitos de ser um paninho de amostra feito por alguma menina casadoira nos idos do séc XIX.
    Curiosamente tenho alguns trabalhos feitos por mim a ponto de cruz, aproveitando justamente pedaços de linho antigos que andavam esquecidos no fundo as arcas das minhas avós. Ficaram um mimo.
    A Maria poderá, se assim entender, mandar emoldurar esse pedacinho de história!


    Um beijinho

    Alexandra Roldão

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  4. Olá Alexandra,
    Gosto muito de a ter por aqui de novo, ainda bem que conseguiu ultrapassar essa má vontade do seu PC - quão insondáveis são os mistérios dos nossos computadores! :)
    Este pano foi irresistível para mim quando o vi, precisamente por todas as caraterísticas que tão bem descreve e que igualmente acredito atestam antiguidade. É realmente um pedacinho de história, da história das mulheres, e também acho que merece ser emoldurado.
    Tal como a Alexandra, tenho por cá ainda restos de linhos antigos e até fiz a experiência de começar num deles um bordado a ponto de cruz, mas não sendo quadrilé, achei muito difícil acertar o desenho e acabei por desistir. Consigo não foi o caso, gabo-lhe a arte e a paciência!
    Com os lençóis de linho antigos das minhas avós, os que não tinham rendas, fartou-se a minha mãe de fazer toalhas e colchas com entremeios e bordados e até eu ainda fiz qualquer coisa, sobretudo rendas porque o bordado nunca foi o meu forte...
    Mas agora com esta moda minimalista e despojada na decoração, poucas pessoas dão valor a estas coisas e já pouca gente as sabe fazer, a não ser o mulherio mais maduro como nós... Bem, a Alexandra nem tanto ;)
    Beijos

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  5. Maria Andrade

    Até há uns meses eu não sabia distinguir, rendas de bordados, tricots e malhas. Achava que era tudo a mesma treta.

    Recentemente, tive que passar catalogar todos os livros sobre têxteis do museu e passei a distinguir, tapeçarias de tapetes e rendas de bordados. foi uma pequena revolução que me leva a olhar com outro interesse estas artes ditas femininas.

    Relativamente à peça, que mostrou o meu pai tem em casa um desses "Samplers" bordado pela minha bisavô paterna, Aninhas, com o alfabeto em letras cursivas, góticas e ainda números árabes e romanos. Julgo que nos finais dos XIX esses Samplers eram já uma forma de as meninas aprenderem o alfabeto e ao mesmo tempo a bordar, até porque cerca de 1890, quando a minha bisavô o bordou, as meninas não iam à escola. Aprendiam a ler e a escrever em casa e oficialmente eram analfabetas.

    Bjos

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  6. Luís, é por essas e por outras que eu lhe invejo tanto o local de trabalho! Sempre rodeado de preciosidades, sempre a descobrir e a aprender coisas novas e interessantes...
    Quanto às rendas e bordados, efetivamente há bordados que parecem rendas, como a magnífica toalha do Manel que mostrou. Àquele trabalho até se chama "renda de Veneza" mas é um bordado, muito trabalhoso e elaborado. Parece-me ter muito ponto de Richelieu, tem crivo, tem brides (o termo deve vir de "bridge") e depois resulta o efeito todo rendado. Não tenho nenhuma toalha de Veneza, mas o bordado da Madeira, ou até dos Açores, atinge efeitos semelhantes e o problema ao usar estas toalhas, para mim não é tanto as nódoas como referiu o Manel (a lixívia gentil faz milagres) mas antes o passar a ferro depois de lavadas...
    Os samplers são outra história, sempre me senti muito atraída por eles, cheios de figuras e letras, muitas vezes também números como o da sua bisavó. Que sorte ter na família um exemplar desses!
    Bem, o assunto promete... :)
    Um abraço

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  7. Estou com dificuldades de tempo, assim, não consigo comentar tão rápido como gostaria.
    Ainda por cima o assunto apraz-me, pois gosto destas coisas que, tradicionalmente, são do foro feminino.
    Digamos que, quando criança, sempre ficava cheio de curiosidade quando em casa de pessoas amigas da minha mãe se iniciava uma toalha, um jogo de cama ou toalhas de casa de banho, o que era sempre uma festividade, apesar da minha mãe não ser muito chegada a este tipo de trabalho. Preferia ler ou viajar, quando a deixavam ou levavam.
    Havia quase que uma reunião de amigas para decidir do tipo de trabalho, as cores, as formas, a consulta aos muitos desenhos que se guardavam em embrulhos especiais, para que a traça não se alimentasse mais do que já se alimentava, e quando uma senhora iniciava o trabalho havia sempre alguém mais que a acompanhava.
    Depois era a marcação do tecido, a contagem dos fios, a definição dos eixos de simetria, os moldes passados a papel químico, a escolha das linhas mais adequada, os matizes, enfim, e, finalmente, eram os tempos infinitos passados na "palheta", os bordados que avançavam a par e os chás que duravam a tarde inteira.
    Claro que todas estas obras acabaram ou num qualquer contentor do lixo, arrastadas pelo chão das feiras de velharias, ou transformadas em panos da loiça ou, se o tecido base fosse bom, em pequenos cortinados de cozinha.
    Eu, sentado a ler num qualquer canto (estranhamente, vá-se lá saber porquê, raro nestas casas havia outras crianças com quem brincar), sentia-me tranquilo e seguro neste meio feminino, com toda aquela conversa em fundo, os doces que me sabiam a delícias, e o tempo em que ninguém implicava comigo ... pura e simplesmente esqueciam-se de mim, o que era uma benesse. Podia ler, desenhar (adorava rabiscar), brincar com uns pequenos carrinhos que os meus pais me ofereciam, e gostava imenso de construir formas com pequenos cubos de madeira que tinha ... era um tempo abençoado.
    Talvez por isso fiquei sempre marcado por este prazer de tranquilidade que estes lavores estivais me proporcionavam e mais tarde aprendi a apreciar este trabalho hercúleo de mulheres anónimas, mas que viviam para criar beleza e partilhá-la.
    Não digo que algumas o não fizessem contra vontade, mas estas últimas não as conheci, pois as mulheres com quem convivi sentiam um grande prazer, e até orgulho, naquilo que saia das suas mãos.
    E assim, em adulto, fui colecionando lavores de outrem, alguns são verdadeiras obras de arte, e claro que as vou guardando não sei bem para quê ... mas que as uso, uso!
    Assim como estes bordados que mostra, os mostruários de quando não existiam, ou então eram muito caros, os moldes em papel ou revistas da especialidade, que acabaram por espalhar pelo mundo todo o tipo de lavor concedendo o dom da criatividade a quem não o tinha.
    Por vezes sou tentado a expor esta ou aquela obra das que tenho, mas são tão frágeis, que se se lhes mexe muito desfazem-se ou a própria luz os torna quebradiços e os fragiliza ainda mais.
    O "arrozado" já vai longo. Uma boa semana
    Manel

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  8. Também tenho bem na memória esses ambientes femininos de rendas e bordados, mas também de costura e malhas, não os conseguindo, no entanto, evocar tão bem como o Manel o fez aqui. Lembro-me sobretudo da revista "Para Ti", que a minha mãe assinava, e dos riscos passados a papel vegetal e depois transferidos a papel químico para o tecido, gestos e procedimentos que envolviam alguma mestria e aprendizado.
    Não admira que também se sinta atraído por peças dos lavores femininos, ao fim e ao cabo as poucas oportunidades que muitas mulheres tinham para darem largas ao seu sentido estético e criatividade...
    Obrigada por ter arranjado tempo para vir partilhar as suas memórias, a propósito de um simples pano bordado a ponto de cruz.
    Um abraço

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  9. Olá. Adorei os panos com amostras de ponto cruz. Coloquei hoje no meu blog http://antiguinho.blogspot.com dois mostruários que tenho guardados. Gosto muito do seu blog e sempre estou por aqui dando uma olhadinha.Abraços.

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    1. Olá Jorge! Gostei muito de saber que também tem panos destes e que os colocou no blogue. Fui ver e achei-os realmente preciosos!
      Ainda bem que gosta de passar por aqui.
      Um abraço

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