sábado, 17 de setembro de 2011

Nossa Senhora da Piedade

Gosto de gravuras antigas, sobretudo porque as relaciono muito com a ilustração de livro antigo, mas as de caráter religioso, os chamados registos,  foram também executadas independentemente da arte livreira, para dar resposta a uma procura motivada pela devoção popular.


O LuísY tem mostrado vários registos da sua coleção e no último post, como resultado de uma pesquisa que fez sobre o assunto, clarificou alguns termos com ele relacionados e deu-me a deixa para este post, embora hoje não me sinta particularmente inspirada para a escrita.
Encontrei esta gravura ou registo representando Nossa Senhora da Piedade, já emoldurada, numa loja de antiguidades de Coimbra, que agora está quase sempre fechada. Comprei-a a preço de saldo, considerando a qualidade e o ótimo estado da moldura, mas também o tema que tem em geral muita aceitação.


Como já aqui tenho dito, as imagens em escultura ou em pintura de Nossa Senhora da Piedade, as Pietás, também são das representações religiosas que mais me cativam e acho esta particularmente tocante.
A posição dos corpos parece-me magistralmente composta, sendo o corpo inerte do Cristo morto uma representação bem realista, anatomicamente perfeita, de uma figura de homem jovem, com 33 anos de idade, segundo a história que conhecemos.
Gosto particularmente da forma como as mãos  estão desenhadas e como se entrelaçam as mãos direitas das duas figuras.



Constam da cena todos os elementos que aí teriam figurado, como o caixão, a base da cruz onde se encosta a mãe com o filho morto nos braços, a escada pela qual foi apeado, no chão os objetos usados na tortura:  martelo,  pregos, alicate e a esponja amarga.

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Mas também constam elementos simbólicos como a espada cravada ao coração de Maria, um elemento mais presente nas iconografias de Maria  designadas como Mater Dolorosa.
A cena de sofrimento e morte está adequadamente encimada por um escudo com as cinco chagas dentro de uma coroa de espinhos, tendo por trás a lança e a esponja de vinagre , todos símbolos da paixão de Cristo.


Embora estes registos fossem destinados à devoção popular, muitas vezes sem grandes exigências  de qualidade artística, a expressão de sofrimento desta Mater Dolorosa e toda a restante composição saiu certamente do lápis de um bom desenhador, cujo nome desconheço.


O que se pode saber pela inscrição na margem inferior é  que esta obra foi executada em Lisboa, na fábrica de António Joaquim Ribeiro situada na Rua da Padaria, nº 17, sendo o G que antecede a inscrição muito provavelmente da palavra gravado ou gravador.
Ainda não consegui encontrar informação sobre este gravador, mas a rua fica na zona da Sé, sai do Largo da Igreja de Santo António e vai entroncar perpendicularmente na rua dos Bacalhoeiros (que passa à frente da Casa dos Bicos). O nº 17 pertence hoje a um prédio que aparenta ser do séc. XIX e se não estou em erro o último ramo de negócio que ali esteve instalado foi uma carpintaria. 
Estas oficinas de gravação e impressão eram simultaneamente locais de venda destas gravuras, daí a vantagem de incluirem o endereço completo do gravador.

Graças ao comentário do Luís, fiquei a conhecer o culto lisboeta de Nossa Senhora da Piedade das Chagas de Cristo, onde certamente se insere este meu registo com o pormenor do escudo com as cinco chagas, e numa breve pesquisa, encontrei um blogue onde se fala deste tema com informação relevante e várias imagens: 


6 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Como sabe pelo-me por estas imagens de piedade barroca. Satisfazem o meu lado mais português, mais eclesiástico.

    Gosto do seu registo. Fez uma boa compra e é uma boa uma peça de arte religiosa.

    Chamo-lhe a atenção para o escudo no topo, com as Chagas de Cristo, o que me leva a pensar que esta Senhora da Piedade fossse aquela imagem que era adorada na igreja das Chagas, perto da Bica, aqui em Lisboa. Andei a consultar o Dicionário de história de Lisboa e os dados batem certo.

    abraços

    Luís
    Abraços

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  3. O nome correcto é Nossa Senhora da Piedade das Chagas de Cristo e era uma das devoções populares de Lisboa

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  4. Muito obrigada,Luís pela importante pista que aqui deixou para eu procurar mais informação sobre a minha gravura.
    Já encontrei imagens da igreja e alguma história sobre esse culto popular lisboeta e agora é mais um ponto de interesse para eu visitar em Lisboa.
    Tenha uma ótima semana de trabalho.
    Um abraço

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  5. A gravura tem uma qualidade que me encanta, pois algumas usam chapas de gravura que, de tão usadas e danificadas, pouco deixam perceber dos pormenores, ainda que se entenda o princípio de composição que presidiu à sua feitura; olhando estas peças por um prisma puramente estético, estas regras de composição não bastam para lhes conceder a beleza que as tornam tão apelativas (não pretendo com isto retirar-lhes a qualidade religiosa que advém da fé que se lhes professa).
    Esta sua é pormenorizada, cuidada e muito bem executada.
    Gosto imenso dela!
    Não a deixaria escapar se a encontrasse pela frente, pois o meu interesse nestas imagens de devoção restringe-se ao seu aspecto técnico de execução, ao próprio desenho em si, e, neste campo, a qualidade é intemporal e resiste a todas as modas ou religiões!
    Quanto ao culto, nada lhe sei adiantar. O Luís sabe mais destes cultos que eu, que pouco ou nada conheço (aliás, foi com o Luís que aprendi a gostar deste tipo de manifestação artística).
    Apesar de não professar nenhuma religião, como já, algures, tive ocasião de mencionar, estas peças conseguem evocar em mim uma certa nostalgia que me coloca em estado de quase sonho, como que um processo de retrocesso no tempo. Faz-me fazer uma viagem como de retorno às origens ... um processo curioso para quem não professa religião!
    E o facto de terem sido objecto de culto e devoção a par do respeito que guardo por este tipo de sentimento comum a tanta gente, faz com que lhes consagre igualmente um lugar especial na minha vida.
    Creio que às pessoas que acreditam, que possuem fé, não obstante terem a vida mais facilitada, ainda que subservientes a um poder exterior, voto-lhes uma certa admiração, pois a fé é algo que distingue o ser humano, que lhe dá uma capacidade de acreditar que eu, de certa forma, gostaria de possuir
    Manel

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  6. Manel,
    Por mais que já durem estas trocas de impressões e de opiniões on-line, continuo a surpreender-me com a afinidade de gostos e de interesses, até de atitudes, que vim encontrar através do blogue.
    Não vivendo numa cidade ou num grande centro, é mais difícil encontrar pessoas que falem assim destas coisas, muitas vezes porque conhecendo-as em contextos profissionais, o "ruído" à volta é tal que não se chega a abordar este género de assuntos.
    Acho que descreveu muito bem o tipo de atração ou de ligação que se pode estabelecer entre pessoas não crentes, como nós, e imagens cheias de conteúdo religioso como é o caso desta N. S. da Piedade.
    Afinal a religião e todas as suas manifestações são criações humanas, e a arte que lhes está associada está carregada de espiritualidade, de beleza e de história, podendo por isso tocar profundamente qualquer mortal.
    Muito obrigada pelo comentário
    e bom resto de semana.

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