sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Um prato com pinta de ser de Gaia



Tenho este prato de faiança há talvez um ano.
Não sei bem porquê, não tenho por hábito trazer aqui peças adquiridas há pouco tempo, parece que para falar delas preciso de um período mais ou menos longo de convívio :) - preciso de as observar durante algum tempo, de pesquisar sobre elas, de as conhecer melhor - mas  neste caso o convívio prolongado não resultou em nenhum conhecimento especial...
Este prato, com 33 cm de diâmetro, foi comprado na Feira de Algés, relativamente barato por estar partido, colado e gateado,  mas é um exemplar que transpira autenticidade e me dá muito prazer poder ver diariamente num lugar bem movimentado da casa.
Tem história, o que é atestado pelo busto de militar que lhe serve de tema central, sendo muitos bustos semelhantes  identificados com a figura do rei D. Miguel. Foi um tema popular nas faianças gaienses do século XIX, sobretudo tratado pela Fábrica da Bandeira em garrida policromia.
Esta figura real, defendendo o absolutismo do antigo regime, contra os ideais liberais do irmão D. Pedro, por algum motivo que me escapa, terá sido muito amada pelo povo, daí talvez a popularidade deste tema. Mas pergunto a mim própria se neste caso, sendo a figura representada com um bigode e ladeada de exóticas palmeiras, não pretenderá retratar antes D. Pedro, o IV de Portugal e o I do Brasil ou qualquer outra figura histórica...

O motivo das duas palmeiras aparece  noutras faianças atribuídas a  Gaia, como o exemplar acima que encontrei na internet (já não me lembro onde) e guardei, mas nunca o vi noutros pratos com busto de militar. Um pormenor gaiense comum aos dois pratos é a vegetação delimitada por uma série de pinceladas, espécie de esponjados, tendo pelo meio uns desenhos filiformes muito caraterísticos, que já salientei num outro post. Mas também Miragaia, do outro lado do rio, os apresenta.
O problema é que ser de Gaia significa poder ter sido fabricado por uma entre mais de uma dezena de fábricas ou oficinas de cerâmica, das quais as mais vezes referidas são Fervença, Bandeira, Afurada e Santo António de Vale da Piedade, todas com produção no século XIX e até a entrar já no XX, usando muitos motivos semelhantes.
Acho que nunca conseguiremos ultrapassar esta dificuldade...

Pratos de um catálogo da Leiria e Nascimento, dois deles com o busto de D. Miguel.
O da direita (nº81) é atribuído à Fábrica da Bandeira.

Entretanto o amigo Fábio Carvalho enviou-me um link no seu comentário onde se podem ver mais três exemplares de faiança portuguesa com bustos deste tipo:
                 http://s12.beta.photobucket.com/user/fabiocarvalho/library/Portugal

E agora, graças ao comentário dos AM-JMV, ganhou consistência uma outra hipótese em relação à figura representada no meu prato azul e branco. Sugeriram eles poder esta figura evocar os militares e exploradores das campanhas de África, no final do século XIX, figuras que se tornaram muito populares dado o impacto que as decisões da Conferência de Berlim - e a rejeição das nossas pretensões aos territórios africanos do mapa cor de rosa  que atingiu o auge com o ultimato inglês - provocou em toda a população portuguesa.

Alexandre de Serpa Pinto, tornado um herói nacional após arriscada
e solitária travessia do interior de África (1879)
Em imagens da época, estes homens aparecem com os seus caraterísticos capacetes de exploradores, podendo ter sido esse o modelo para o tosco desenho da figura do meu prato... que também usa capacete!
Capelo e Ivens nos seus trajos de exploradores africanos 

Este seria um período mais consentâneo com a provável data de fabrico do prato, que a mim me parece ser o final do século XIX, já distante da guerra civil entre liberais e absolutistas que pôs na ribalta as duas figuras reais que referi em cima.

Ainda mais um importante contributo, desta vez da If. No seu comentário lembrou que o nosso amigo LuisY, no Velharias, já publicou um prato ratinho com o busto de Serpa Pinto, mas ele certamente não se lembrou de o referir no comentário que fez aqui. Vale a pena ir lá apreciá-lo.

18 comentários:

  1. Hi Maria,
    Thanks for sharing.It's an interesting plate.
    And reading your article, I had a chance to try to read Portuguese since Spanish is similar to your language.

    Felicity

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    1. Hello Felicity,
      Spanish and Portuguese are so similar languages that we can easily understand each other, specially in writing.
      I'm glad you enjoyed seeing this Portuguese plate.
      Have a nice weekend.

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  2. Olá Maria Andrade,
    Mais uma peça interessante, mais um aprendizado, ao menos para mim, mas certamente também para muitos outros.
    Dei uma olhada nos meus catálogos de faiança portuguesa, mas não achei grande coisa para lhe passar. De toda forma, aqui está um link com 3 pratos com figuras militares, sendo 2 de D. Miguel, e mais um que acrescentei pois achei a pose parecida com o teu.
    http://s12.beta.photobucket.com/user/fabiocarvalho/library/Portugal
    b'jinhos!

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    1. Caro Fábio,
      Tinha acabado de preparar a última fotografia para aqui acrescentar quando vi o seu comentário.
      Agradeço-lhe o interesse em vir em meu auxílio e também o link com as imagens. O que acho curioso é que os exemplares que aparecem com o busto de D. Miguel são geralmente em policromia. Também acho o busto do prato da direita no link numa posição semelhante e até tem bigode como no meu, ao contrário dos outros exemplares. É pena não ter atribuição.
      Mais uma vez muito obrigada.
      Beijos

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  3. Cara Maria,
    Embora não estejamos no campo que nos é mais familiar, este prato despertou-nos a curiosidade pelas hipóteses que levanta. A técnica da estampilha nele utlizada parece-nos remeter para a 2ª metade do séc. XIX, e a figura central efectivamente sugere ser baseada na mesma gravura que terá dado origem à do prato apresentado pelo Fábio. Ambas de saboroso recorte popular. No entanto, no seu prato parece ecoar a propaganda patriótica que as campanhas de África provocaram no país, sobretudo após o Congresso de Berlim, em 1875. Assim sendo, a nosso ver, a figura, ladeada pelas palmeiras, evocaria os exploradores africanistas da altura. Tratar-se-ia, então, da actualização de uma imagem iconográfica anterior, a do militar, aqui transfigurada e transposta para um contexto, à época, mais actual. Mero exercício especulativo, claro. :)
    Bjs

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    1. E parece-me que especularam muito bem, caros amigos AM-JMV. Uma das minhas perplexidades tinha a ver com o facto de o prato me parecer já do final do séc. XIX, muito tempo depois da guerra civil e dos tempos de maior popularidade das duas figuras reais. Não me tinha ocorrido essa hipótese de esta figura de militar evocar os exploradores das campanhas de África e resultar de toda a exaltação nacionalista provocada pela questão do mapa cor de rosa e do ultimato inglês, que me parece agora bem plausível! O autor desta pintura deliciosamente tosca poderia querer aqui representar Serpa Pinto ou um elemento da dupla Capelo e Ivens, que aparecem em gravuras da época com fartos bigodes e os caraterísticos capacetes de explorador que este militar do prato usa na cabeça.
      Muito obrigada pela importante achega.
      Beijos

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  4. Olá Maria Andrade. Atrevo-me a dizer que estive com o seu prato na mão num estaminé de chão que fazia parelha com outro também azul - estavam muito sujos e gateados, o vendedor meu conhecido pedia muito, dizia que era o D.Miguel- chateei-me porque os comprou ao colega do lado ao preço da "uva mijona" e depois queria fazer com eles o lucro da feira... dei uma volta, voltei de novo e só já havia um prato...ainda bem que ficou consigo.Para mim o prato é de Coimbra - embora pareça Gaia. Lembro-me perfeitamente do esmalte muito branco, dos filetes em azul finos no limite do covo, das flores da aba em desenho miúdo, da taja em meia tinta na aba e do arabesco em jeito de "L"do lado direto muito habitual na faiança de Coimbra além das palmeiras na forma das folhas - claro que todos sabemos que outras fábricas copiavam os desenhos e em particular este prato tem um rodapé que nos catapulta em imediato para Gaia - mas não é - há pratos certificados em Museus como sendo Coimbra com este rodapé - claro é o que me apraz dizer, sabemos que são sempre hipóteses.
    Amei saber que ficou consigo!Parabéns
    Beijos
    Isabel

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    1. Que coincidência, M. Isabel, termos andado de volta do mesmo prato na Feira de Algés! Somos ambas raparigas de bom gosto!
      Quanto a ser de Coimbra ou de Gaia, para mim há ali pormenores decorativos que tenho visto em catálogos - dos Meninos Gordos e da Faiança de Miragaia, por exemplo - que são caraterísticos daquela zona do Porto e Gaia, como o tratamento da vegetação nas paisagens ou na base das figuras; a cercadura em dois tons de azul... mas certezas dificilmente as teremos...
      Obrigada pela visita.
      Bjos

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  5. O D. Miguel costuma ser representando sem bigodes. Portanto, os seus amigos da cerâmica contemporânea, os AM-JMV, são bem capazes de ter razão e o senhor do seu prato deverá representar um desses africanistas das últimas décadas do séc. XIX. Quanto ao fabrico tenho menos certezas, mas também me inclino para Gaia ou Porto.

    Bjos

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    1. Pois é, amigo Luís, também acho que é essa a direção certa, mas de tanto se falar no busto de D. Miguel sempre que aparece um busto deste tipo nas faianças, acabamos por ser influenciados e começar por aí as conjeturas...
      Ainda bem que tem o mesmo palpite que eu, em relação ao local de origem.
      Bjos.

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  6. Quando vi o seu prato, não pude deixar de o associar de imediato a alguns dos nossos exploradores do continente africano. As palmeiras e o capacete colonial, são referências muito fortes a África e se atendermos à representação do bigode e do colarinho da farda, então será sem dúvida o Serpa Pinto. Especulando, diria até, que a foto que nos mostra poderá, quem sabe, ter servido de modelo a quem pintou o seu encantador prato. A cercadura é-me vagamente familiar. Beijinhos e parbéns pela compra.

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    1. A Maria Paula, com a sua vivência africana, foi logo mais perspicaz na identificação da figura.
      Realmente, agora também a mim me parece lógica a associação a África, mas foi preciso ser levada na direção certa pelos AM-JMV! E ter sido o Serpa Pinto a servir de modelo também acho muito possível!
      É por isso que estas trocas de ideias nos blogues são tão interessantes e produtivas!
      Obrigada pela visita. Beijos.

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  7. Maria Andrade, parabéns pela compra, é um prato lindíssimo, gosto imenso dele. Aqueles azuis são fascinantes, como só os do Norte soem ser, pois inclino-me igualmente para a hipótese de Gaia, tal como a Maria Andrade coloca.
    E, como já outros referem, também me parece uma figura alusiva às explorações africanas, tema tão popular e contemporâneo à sociedade portuguesa do último quartel do séc. XIX.
    Até as palmeiras introduzem esse elemento exótico, alusivo a outras paragens.
    Que bela aquisição! Gosto imenso!
    Uma boa semana
    Manel

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    1. Obrigada, amigo Manel, também fiquei satisfeita com a compra deste prato por ser uma peça bonita, com os tais azuis que nos fascinam, de temática interessante e até invulgar, tanto quanto eu conheço.
      E afinal com todas estas achegas fiquei a saber mais sobre ela, pelo menos tem muita lógica a hipótese do explorador africano, quem sabe se o próprio Serpa Pinto ali retratado.
      Uma boa semana também para si.
      Um abraço

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  8. Olá Maria
    O seu prato, pelos azuis em degradé, vive dos sombreados, que conseguem, por si, mostrar-nos uma figura bem integrada na paisagem. A hipótese de ser a representação de Serpa Pinto não é de excluir. Explorando o interior do continente africano mostra a excelência do povo português, tornando-se no herói que todos desejavam ser. Há tempos, no blog Velharias, foi mostrado um prato ratinho com a efígie de Serpa Pinto e a data -1891-, o que vem, mais uma vez, comprovar a universalidade das representações usadas pelos pintores de louça, que usavam as mesmas imagens em zonas geográficas distintas e centros fabris diferentes.
    if

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    1. Cara If,
      Cá está uma apreciação que revela uma leitura atenta e bem treinada dos pormenores do meu prato, para além de considerações bem pertinentes sobre as imagens usadas na faiança popular.
      Agradeço-lhe ter mencionado esse prato ratinho com o busto de Serpa Pinto que o Luís publicou no Velharias. Sinceramente, não me lembrei desse exemplar - quando escrevi o texto estava muito longe da hipótese do Serpa Pinto - mas quando o nome veio aqui à baila, tive ideia de o Luís lá ter a fotografia do Serpa Pinto, só já não sabia a que propósito(a memória a fraquejar...)
      Já acrescentei ao texto o link para esse post do Luís. Obrigada.
      Um abraço

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  9. Maria Andrade

    Eu lembrei-me do Serpa Pinto e do prato, mas nos finais do Séc. XIX a maioria dos homens usavam grandes e artísticos bogodes, de modo que o senhor representado de forma muito esquematizada no prato poderia ser qualquer um desses exploradores africanos, que enchiam as páginas dos jornais. Mas em todo, o caso parece-me mais ou menos certo, que o Senhor do seu prato deve representar um militar ou um explorador em África.

    Bjos

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    1. Sim, Luís, concordo consigo que no meu prato não há garantia nenhuma de que se trate de Serpa Pinto, pode ser qualquer outro explorador, mas no ratinho que publicou há a certeza, pelas iniciais e pela data, por isso é que acho interessante mencioná-lo aqui.
      Obrigada por não ter deixado o meu repto sem resposta.
      Bjos

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