quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Reabilitação de uma Pietá em madeira policromada


Esta escultura da Pietá, nome com que vulgarmente se designam representações de Nossa Senhora da Piedade e de Nossa Senhora das Dores, foi comprada em muito mau estado na feira de velharias de Aveiro. Para além de lhe faltarem as mãos do Cristo e ter faltas de policromia, como ainda se vê, estava muito suja e baça, tinha orifícios causados por xilófagos e rachas na madeira.
Quando a trouxemos para casa, o meu marido e eu começámos por a limpar toda com cera de abelha e depois foi pulverizada com xilofene e metida numa estufa de desinfestação - um saco de plástico a que se retira o ar, matando os xilófagos por ausência de oxigénio - durante várias semanas. Depois de desinfestada, tapámos-lhe os orifícios maiores e as rachas com uma massa de madeira e finalmente levou um fixador, para a madeira carcomida não se esboroar mais, e o acabamento a cera de abelha. Aprendemos este processo numas aulas de Museologia Conservação e Restauro que frequentámos no ano passado na Curia, dadas pelo professor Miguel Duque.
Acho que lhe demos um restauro museológico, que visou sobretudo conservar a peça, evitando que o processo de degradação continuasse.

Tenho pena de não ter conhecimentos de História de Arte que me permitam datar esta escultura. Poderá ser do séc. XVIII, considerando a grande expressividade nos rostos, quer da Virgem Maria, quer de Jesus Cristo e o ondulado dos cabelos dele. Mas não tem o movimento das vestes tão típico do Barroco setecentista. Também poderá ser uma peça de arte popular e não reflectir com tanta evidência as tendências artísticas da sua época, mas revela sem dúvida uma grande mestria na arte de esculpir em madeira.


O termo Pietá - que significa piedade em italiano, do latim pietas, pietatis - para designar a figura da Virgem Maria segurando o filho morto nos braços, vulgarizou-se na Europa devido à  magnífica escultura em mármore de Miguel Ângelo, do final do séc. XV,  que se pode ver na Basílica de S. Pedro no Vaticano. No entanto, as primeiras representações deste momento da morte de Jesus Cristo e do sofrimento da sua mãe recuam à Alemanha do séc. XIII onde estas imagens eram designadas por Vesperbild. Passaram então a ter um lugar equiparado ao da crucificação, na devoção dos fiéis.
Pessoalmente, e não tendo nada a ver com questões de devoção, em termos de tema de arte sacra, prefiro estas imagens do amor e conforto que uma mãe, no meio duma dor extrema, procura ainda dar ao filho morto, do que as da crucificação, que representam o sofrimento atroz de um homem, completamente só e desamparado, à mercê da maldade mais desumana dos seus semelhantes.

8 comentários:

  1. Olá Maria A.
    Parabéns pela sua aquisição.
    Uma obra prima, a sua Pietá, em madeira, mui antiga com expressões de encantar.
    Também eu se a visse, e tivesse a carteira recheada a teria trazido comigo. Gostamos muito de arte sacra, porém ficamos por peças de valores sem significado, que adoramos na mesma,sempre com a ideia que um dia teremos uma de verdade!
    Aprendi a fórmula de desinfecção e de restauro das rachas na madeira, é muito motivante este crescente conhecimento e aprendizagem .
    Bom fim de semana
    Beijos
    Isabel

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  2. Cara Isa,
    Fico contente por partilharmos também o gosto por arte sacra. O problema é q estas imagens muitas vezes atingem preços proibitivos.
    Esta foi a primeira escultura de arte sacra em madeira q achámos comportável comprar. Até tem um tamanho razoável, mas como o estado era realmente lastimoso, lá nos fizeram um preço em conta. Gosto dela mesmo assim e nem a imagino toda restauradinha e pintadinha, acho q perdia todo o encanto q lhe foi dado pela passagem dos anos e a história q viveu. É como as nossas rugas, acho muito mais interessante um rosto cuidado com as suas rugazinhas do q aqueles todos esticados e pouco expressivos graças às plásticas, botox e companhia. Bem, preferia q o Cristo tivesse as mãos, mas pôr-lhe umas mãos novas sem fazer um restauro completo também não iria resultar.
    É certo q pudemos comprá-la porq aprendemos a dar um jeito a estas peças, de contrário não valia a pena. Agora a Isa também já sabe como se faz...
    Beijos e um bom Domingo.

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  3. Devo confessar que a tentação é grande para recuperar uma peça na sua forma original, no entanto, reconheço que ela fica muito mais digna e impressionante quando se lhe reconhece a passagem do tempo e todas as mazelas que lhe foram deixadas.
    Sou apologista que deve ser deixada o mais próximo do seu estado actual não descurando no entanto a sua "saúde", como aliás fizeram nesta peça.
    Recentemente comentei algo semelhante no blog do Luís e também fiz referência às "Pietá", uma forma de arte que nasceu no Norte da Europa medieval, com a sua tendência para o dramatismo, onde se tenta captar o sofrimento redentor, porque no Norte a religião era (e continua a sê-lo) uma caso levado a sério. Não é por acaso que os grande movimentos de rebelião protestantes têm ali início.
    Nunca vejo uma "pietá" que não me venham imediatamente à cabeça as composições musicais relacionadas com este tema e que na minha cabeça lhe estão intimamente ligadas: os "Stabat Mater", dos quais distingo sobretudo os de Pergolesi e Vivaldi (os meus favoritos). Porque é muito popular, deve ser do vosso conhecimento o de Vivaldi cantado pela Sara Mingardo, mas se o não conhecerem recomendo-vo-lo vivamente (é uma viagem pelo céu!). Se preferirem os contemporâneos, gosto especialmente do Stabat Mater de Arvo Pärt, absolutamente fantástico!
    De volta para a escultura, na Europa meridional nunca gostámos muito de exteriorizar sentimentos, e somos mais contidos na emoção, pelo que as nossas "Pietá" são mais próximas de uma resignação contida, como esta.
    Esta vossa, e guardadas as respectivas distâncias, faz-me recordar uma outra produzida por um dos maiores escultores do Gótico Final alemão (início séc. XVI), Tilman Riemanschneider, cuja Pietá é das minhas favoritas, com a Virgem com o mesmo aspecto sofredor resignado.
    Peço desculpa por todo este arrazoado, mas estaa peça que aqui trouxe desperta-me para todas estas imagens.
    Manel

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  4. Caro Manel,
    Só tenho a agradecer-lhe as belíssimas e muito oportunas reflexões q aqui deixou a propósito desta Pietá. Graças a si, também desfrutei de emocionantes momentos musicais a ouvir os "Stabat Mater" de Vivaldi e Pergolesi no YouTube. São trechos realmente magníficos q não conhecia e de q também acompanhei o belo texto. Infelizmente a minha cultura musical em termos de música clássica é muito limitada, desde logo porq nunca tive qualquer formação nessa área e também nunca tive muitas oportunidades de assistir a concertos. Conheço o mais óbvio e mais popular, sobretudo óperas, dos compositores mais conhecidos. De resto, sou mais da onda pop-rock.
    Também fui ver a Pietá de Tilman Riemanschneider, q não sabia contemporâneo de Miguel Ângelo, e achei-a impressionante.
    Como vê, proporcionou-me um programa cultural de excelência para o fim da tarde de Domingo.
    Muito obrigada.

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  5. Cara Maria Andrade

    Fiquei naturalmente encantado com sua Nossa Senhora da Piedade, que é também um dos meus temas preferidos na arte sacra.

    Toda a gente fala no azulejo como a disciplina da arte que os portugueses desenvolveram com mais originalidade e brilho. Sem dúvida o azulejo vence em originalidade, mas a imaginária religiosa feita em Portugal não lhe fica atrás em brilho. Considero a escultura religiosa portuguesa fabulosa e em qualquer pequena igreja do país podemos admirar peças dignas dos melhores museus. Aliás, os museus nacionais portugueses formaram as suas colecções a partir das capelas dos conventos extintos.

    Por essas razões comprar imaginária religiosa é dos investimentos mais belos que as pessoas de cultura ou de gosto podem fazer em Portugal, mesmo que já não tenham qualquer espécie de crença em Deus, na Virgem ou nos Apóstolos.

    Também aprecio mais as peças que acusem o peso do tempo.

    Não sei se a Maria Andrade conhece o autor Moisés do Espírito Santo. Esse senhor que escreveu uma obra, que é As origens orientais da religião portuguesa, onde defende, que a religião portuguesa tradicional é eminentemente feminina. É à volta da virgem ou de Sta. Ana que toda a devoção popular se centra. Os Homens aparecem apenas ou como meninos (Jesus), ou como seres sofredores (os Cristos ou S. Sebastião) ou ainda assexuados, como o Sto. António.

    Sei que é uma interpretação um bocadinho forte, mas não a podia deixar de referir a propósito desta nossa Senhora do Pranto, com o filho nos braços.

    Abraços

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  6. Conheço Moisés do Espírito Santo de nome e sabia q tem estudos inovadores sobre a origem da língua portuguesa. De resto não sabia mais nada, mas com este nome, só podia ter-se dedicado também a estudos sobre religião... :)
    Como o tenho por intelectual sério, para ter produzido afirmações como essa, deve ter-se baseado em muita investigação e dados credíveis.
    Eu, como leiga na matéria, lembro-me de muitos santos, homens, q também congregam à sua volta muita devoção, mas se calhar as Nossas Senhoras todas e as santas todas são em muito maior número. A verdade é q devemos à religião, não só o mecenato mas também a inspiração para tantas magníficas obras de arte q temos o dever de valorizar e procurar preservar.
    Abraços

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  7. Ola Maria

    Lindíssima peça!

    E as técnicas de restauro serão bastante úteis...

    Digna de um museu.

    Muito obrigado


    Flávio Silva

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  8. Caro Flávio Silva,
    Bem-vindo ao meu blogue!
    Eu é que lhe agradeço a visita e as palavras simpáticas.
    Ainda bem q gostou da peça, embora tenha tido pouco restauro, praticamente só limpeza.
    Volte sempre.

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