sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Taça chinesa decorada na Holanda ou os longos percursos da porcelana




Esta tacinha de chá de porcelana chinesa , do séc. XVIII, é um dos meus mais estimados pequenos tesouros porque representa um período muito particular da história da porcelana na Europa.
 Nunca é demais lembrar que foram os portugueses envolvidos na saga das descobertas que, ao longo do séc. XVI, foram responsáveis pela chegada à Europa, através do porto de Lisboa, de imensas cargas com objectos de porcelana, entre outras riquezas. 
A China já a fabricava no séc. IX mas ficava a uma distância incomensurável à época, e só muito esporadicamente havia notícias na Europa da existência daquele produto simultaneamente belo, resistente, de fácil lavagem e manutenção e sem perigos para a saúde. Convém lembrar que os materiais usados até então para servir os alimentos eram o barro, a madeira e os metais mais ou menos nobres, cuja oxidação representava grandes riscos para a saúde. O vidro era um produto caro e muito frágil.


Assim, quer através da Rota da Seda, quer através do comércio dos Árabes com o Extremo Oriente, iam chegando aos portos do Mediterrâneo exemplares de porcelana que muito fascinavam os europeus mais ricos, membros das casas reais, os únicos que podiam aspirar a possuir tão exótico material nos seus Gabinetes de Curiosidades. As porcelanas chinesas eram assim equiparadas a objectos de cristal de rocha, de jade, de marfim e madrepérola, de prata, ouro e pedras preciosas, que enchiam estas verdadeiras cavernas de Ali Babá.
Ao abrir-se a Rota do Cabo e a carreira da Índia, a China ficou muito mais próxima da Europa e não só as especiarias, mas muitos outros produtos exóticos do Oriente fizeram a sua aparição triunfal no porto de Lisboa onde mercadores de toda a Europa, mas sobretudo da Europa do Norte, os esperavam para depois os distribuirem pelos respectivos países. Assim se foi criando um mercado para a porcelana e uma procura cada vez maior.


O meu mini-micro-nano gabinete de curiosidades com pequenas peças orientais


Porém, durante o séc. XVII, ao mesmo tempo que o quase monopólio do comércio do Oriente passava das mãos dos portugueses para as dos holandeses, cujos piratas começaram a sistematicamente assaltar e pilhar as grandes carracas portuguesas, (daí o nome kraakporselein, ainda hoje dado à porcelana chinesa de exportação desse período) também a manufactura de porcelana na China sofria as consequências da guerra civil, entrando em declínio. É então que entra em cena um novo país exportador de porcelana, o Japão, que através do comércio monopolista dos holandeses, coloca os seus produtos na Europa, educando o gosto europeu no sentido da decoração imari e kakiemon. Os tons imari - fundamentalmente azul, vermelho e dourados - passam a ser moda e a procura é crescente. Os próprios chineses que entretanto recuperaram o mercado, começam a fabricar o chamado imari chinês e a satisfazer este novo gosto.


É então, já à beira do séc. XVIII, que os holandeses começam a utilizar um estratagema que lhes permite abastecer o mercado europeu de porcelana imari a preços muito reduzidos: importam porcelana azul e branca da China - a que utiliza decoração azul sob o vidrado, sem acrescentar outras cores sobre o vidrado, o que encarecia o processo e consequentemente o produto - e é só na Holanda que os restantes tons imari são acrescentados em pequenas oficinas de pintura de porcelana, processo a que os ingleses chamaram clobbering.
Foi este o caso da tacinha de chá que é vedeta neste post. Trouxe da China umas nuvens e ramagens azuis e depois de viajar largos meses no fundo de um escuro porão, chegou à Europa onde toda a restante pintura foi acrescentada por mãos holandesas a meados do séc. XVIII. A pequena travessa oval que está dentro da vitrine também pode ter sido decorada pelo mesmo processo, ou então é de imari chinês. Ainda não consegui esclarecer esta dúvida porque nunca vi nenhuma igual, ao passo que a decoração da taça de chá aparece em livros e sites.


Comprei-a numa feira, não me lembro se em Aveiro se em Coimbra porque o vendedor faz estas e outras feiras. Andei a namorá-la durante algum tempo porque achava o preço alto, considerando o tamanho e o estado de conservação da peça, mas já me parecia algo de especial. Soube destas histórias de porcelana decorada na Holanda, e também em oficinas de Londres, através de sites ingleses, não me lembro se antes se depois de a comprar, mas o certo é que a comprei por 30€ há já uns anos.
Hoje acho que foi um preço muito acessível, considerando o prazer que me dá ter em casa  uma peça capaz de contar toda esta história dos longos percursos da porcelana.

9 comentários:

  1. Ola Maria Andrade,
    que peça lindíssima e que bom visitar o seu blog e aprender tantas coisas, acerca de um imenso mundo que gira à volta deste assunto que tanto nos apraz... "It's a kind of Magic!"é essa essencia que torna especial a procura de peças e pecinhas por feiras, lojas, montes de lixo, internet e até em casa de amigos... Nunca lhe aconteceu? visitar alguem e de repente apanhar-se a admirar um objecto de tal forma que chega a ficar atrapalhada quando alguem repara? pois é!!! a mim já! e não foi só uma vez!!! :-) .

    Bem já me estou a perder nas palavras, mais uma vez e, como muitas vezes foi já comentado neste blog, admiro e agradeço a maneira como escreve e divide os seus conhecimentos nesta matéria.

    Beijinho

    Marília Marques

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  2. Olhe, Marília, não podia ter encontrado melhor forma de sintetizar esta nossa atracção por objectos de outras eras: "it'a a kind of magic!" Que é um mundo fantástico e muito estimulante precisamente porq congrega um nunca acabar de conhecimentos não tenho a menor dúvida.
    Quanto a admirar objectos em casa de amigos, o q me acontece por xs é pedir licença para virar a peça e ver a marca. Não compreendo como há pessoas q têm em casa peças belíssimas e não sabem nada delas...
    Obrigada pelas suas simpáticas palavras e cá fico a aguardar o regresso dos seus posts.
    Beijos

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  3. É de facto fascinante connhecer as transformações que as peças vão sofrendo ao longo da sua existência. Recordou-me aquela belíssima exposição na Gulbenkian, a Exótica, que mostrava peças chinesas, indianas, africanas e japonesas, trazidas para a Europa pelos portugueses e que depois eram aqui alteradas, montadas em suportes de prata, encastradas em ouro, gravadas e trabalhadas ao gosto ocidental e transformam-se em objectos que não eram nem orientais, nem europeus, mas ...exóticos

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  4. Essas peças de q fala, Luís, já estão numa outra escala de valores. Não vi a Exótica e tenho pena, mas já vi muitas peças desse tipo em exposições e em colecções permanentes de museus, cá e no estrangeiro. A última exposição q vi cá e tinha também peças montadas em artísticos trabalhos de ouro e prata, como os belos nautilus, por exemplo, foi a "Encompassing the Globe" no Museu Nacional de Arte Antiga, uma exposição magnífica q também deve ter visto. Um material q me fascina muito, não sei porquê, é o cristal de rocha, acho sempre uma maravilha os objectos em q ele participa. Mas, para além da transformação sofrida, nada disto tem a ver com a minha pequena e humilde tacinha de porcelana decorada na Holanda.

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  5. Claro, com as devidas proporções, mas o fenómeno de transformação das peças a um gosto mais europeu é o mesmo da Exótica.

    Agora, claro, peças como as da Exótica só os melhores museus europeus as possuem. Tb vi o Encompassing aqui em Lisboa no MNAA e de facto tinha algumas peças da "Exótica", pois o comissário português foi o mesmo nas duas mostras..

    Abraços

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  6. Caro Luís,
    Se eu vivesse em Lisboa, com certeza nos cruzaríamos com frequência em feiras, museus e exposições...
    Penso q já resolvi o problema da não aceitação de comentários anónimos. Quando criei o blogue devo ter inadvertidamente marcado uma opção q dava esse resultado.
    Fico a aguardar e certamente o meu blogue vai ficar enriquecido com os comentários do seu amigo Manel e talvez de outras pessoas, quem sabe?

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  7. Maria A.
    Sou fascinada por porcelana chinesa, quanto mais antiga melhor.
    Adoro a dinastia doo Cantão azul, acho que adoro todas as dinastias. Miro-as nos sites de leilões onde aparecem com grande frequência.
    A sua tacinha é delicada em tons laranja que adoro também.Linda a exposição em prateleirinhas de requinte com várias peças orientais.
    Um gosto que perfilho, também tenho algumas peças, um dia destes também aqui as trago.
    O mais interessante é a variedade que nos divide o imaginário, oriental, inglesa e portuguesa, há peças francesas também bonitas, claro!
    Beijos
    Isabel

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  8. Gostaria de saber a época de algumas taça que possuo sei que sao bem antigas como faço para conversar por email ou lhe mostrar desde ja obrigado.

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    1. Tem o meu e-mail de apoio ao blogue no perfil, mas já agora, fica também aqui:
      andrade.maria82@gmail.com
      Cumprimentos

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