quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Livro antigo seriamente truncado

Este livro, encadernado a pele, era da casa dos avós do meu marido. Quando o vi pela primeira vez, já pertença de uma tia que ficou a viver na casa, estava com mais dois, também encadernados e do mesmo tamanho (30x20),  poisado entre muita papelada debaixo do tampo de uma secretária, num pequeno escritório. Mal vi, ao pegar num deles,que eram livros do séc. XVIII, mostrei-me interessada em os levar para casa para ver de que obras se tratava, mas tal não me foi consentido. O meu marido acreditava que tinham pertencido a antepassados, tios-bisavós ou trisavós, que se dizia na família terem sido frades e freiras. Anos depois, após a morte dessa tia, a principal herdeira da casa e dos haveres concordou em nos dar um dos livros, mas qual não foi o meu espanto quando ao abri-lo, me deparei com páginas e páginas arrancadas, quer no princípio, quer no fim do livro. Acho que foi a maior decepção da minha vida nesta área das antiguidades.


Parecia-me que tinha havido ali um ato de maldade gratuito e inqualificável. É que nem sequer sabia o título, a data, nada. Não havendo folha de rosto, lá se vai a identidade. Dispunha apenas da informação da lombada, o nome do autor, SOARES BAHIENS e o volume, T.I.

Fui então investigar pelo autor, o Padre João Álvares Soares, também conhecido por Soares Bahiense, padre jesuíta do mesmo colégio da Companhia de Jesus da Baía a que pertenceu o Padre António Vieira, e acabei por chegar ao título: Progymnasma Literario.
A obra foi publicada em 1737, quarenta anos após a morte de Vieira, e é constituída por um conjunto de 72 discursos de caráter moral, seguindo as letras do alfabeto, mas que terminaram na letra C, na palavra Ceo. São textos com muitas referências a figuras e episódios bíblicos e também à mitologia clássica. Como a obra não foi concluída, só existe este primeiro volume.
O único exemplar que encontrei nas bibliotecas portuguesas, na informação disponibilizada online, foi no fundo antigo da  Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra que se localiza na Biblioteca Joanina e fui lá para o consultar. Tive que o requisitar com antecedência na Biblioteca Geral e depois voltar lá para a consulta. Consegui que me digitalizassem e gravassem em CD, mediante pagamento, claro, não só a folha de rosto, mas toda a dedicatória ao rei D. João V e também a parte final do índice que também tinha sido arrancada.


Era um exemplar magnífico e raro que de forma tão leviana se tornou irreconhecível, mas agora penso que não terá sido um ato de maldade mas antes ignorância pura e simples. O livro teve o azar de cair em mãos pouco instruídas, a dona e a criada com quem vivia, que certamente encontraram alguma utilidade para aquelas folhas todas de papel. Sei que pelo menos um dos outros dois exemplares salvou-se completo.


Como sou grande admiradora do Padre António Vieira, agrada-me pensar que este livro possa ter sido escrito sob a sua influência, já que o autor pode muito bem ter sido seu discípulo.

5 comentários:

  1. Olá Maria A.
    Desde cedo que percebi o seu carinho por livros antigos.
    Confesso que não fui educada a ler, embora os meus pais já tivessem estudado, das estantes terem livros lá em casa,os meus pais viviam já stressados como hoje, trabalhavam os dois, fui "educada" por criadas analfabetas, nunca fui despertada para a leitura.
    De facto até hoje, leio sempre as revistas de trás para a frente, leio apressadamente, o que me embaraça porque leio mal e tenho de voltar atrás.
    Pior foi quando comecei a namorar o meu marido me deu um livro "Sexus", o assunto naquele tempo era tabu, ainda por cima tinha estado num colégio de freiras...comecei a ler, o primeiro problema foram os nomes científicos, só conhecia poucos e de gíria..., saltei páginas fui ao meio, corri o fim,voltei ao início...fiquei em pânico, enjoada, acabei o namoro!
    Tentei, várias vezes voltar a ler...não consigo que a leitura me cative, concentre, eleve em nirvana!
    Contudo desde sempre que aprecio os livros antigos, nutro por eles um fascínio, tenho alguns que tenho adquirido nas feiras na casa rural e na de província, sem eles as casas estão vazias...
    Contudo tem sido neste meio virtual que me tenho aperfeiçoado na escrita e deliciado na leitura intimista, poética, simples, de pesquisa, de partilha, por isso, brevemente vou atirar-me num livro da Yourcenar, que conheci através do Luís, jamais esquecerei a forma como fala dela, dos seus pensamentos...
    Bom que conseguiu arranjar as páginas que lhe faltavam!
    Admiro a sua vontade na pesquisa e resolução, admirável!
    Uma mulher e "pêras"!
    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  2. Sabe, Isabel, este gosto pelos livros herdei-o do meu pai q sempre vi a comprar e a ler muitos livros e revistas. Quando era novo também aprendeu encadernação e já em idade madura encadernou uma grande parte dos livros q tinha, o q me agrada bastante. Também gostava de aprender com ele, mas ainda não nos dispusemos a isso. Não vivemos muito perto, o q dificulta o projecto.
    A minha filha, a mãe do bebé q nasce em Janeiro, é uma boa continuadora deste gosto. Já o meu filho é mais virado para as matemáticas e as tecnologias da informação e é muito bom nisso também (Já me estou a babar com as qualidades dos filhotes). Foi ele o primeiro seguidor q tive no blogue e diz q se baba todo com os comentários q lê sobre a mãe... mas isso deve-se sobretudo à simpatia dos meus leitores...
    Beijos
    Maria A.

    ResponderEliminar
  3. Tal como a Maria Andrade tenho uma paixão por livro antigo, muito embora há muito tempo que deixei de privar com essa amada. As reviravoltas profissionais da vida afastaram-me da catalogação do livro antigo. Achava imensa graça ao trabalho de pesquisa, que aqui tão bem descreveu, em que se descobre o título e o autor de uma obra sem dispor da folha de rosto e com metade das páginas arrancadas. O tratamento de livro antigo é um trabalho fascinante e que desenvolve uma memória bibliogáfica estupenda, pois como cada livro é quase um caso único, fotografamo-lo mentalmente e dali a uns cinco anos ainda nos recordamos dele, quando se nos depara outro exemplar pela frente.

    Também aprecio o Padre António Vieira, bem como os outros padres Jesuítas daquele tempo, que saíram em defesa dos índios e alertaram para os excessos da Inquisição

    Abraços

    ResponderEliminar
  4. Caro Luís, estava ansiosa pelo seu comentário a este post por o saber amante e conhecedor de livro antigo. Eu nunca trabalhei ou tive qualquer formação nesta área, o que sei é apenas por gosto, fazendo leituras e pesquisa, mas realmente deve ser muito aliciante fazer catalogação destes livros, partindo à descoberta de todos os dados a partir por vezes de um mínimo de informação. Já fiquei mais animada por referir q também havia livros com muitas páginas arrancadas e mesmo assim eram catalogados.
    Não sei é se nesses casos ainda procedem a restauros, fazendo incorporação de folhas a partir de cópias de outros exemplares. Já vi uma exposição de livros restaurados na Biblioteca Nacional, um trabalho altamente especializado e moroso, com restauro não só das encadernações, mas também das folhas de papel, já com faltas de bocados. Os resultados eram belíssimos.
    Não posso deixar de lhe falar de uma exposição q me deixou fascinada na Biblioteca Britânica, onde mostram muitos manuscritos, os livros sagrados de várias religiões - bíblias, corões, livros de horas, livros budistas, etc. - cheios de iluminuras magníficas, para já não falar de uma sala exclusivamente dedicada à Magna Carta .
    Estou a falar disto tudo e pode até já ter lá estado, se assim for, desculpe a "seca"; se não, recomendo vivamente a visita.
    Um abraço
    Maria A.

    ResponderEliminar
  5. Infelizmente nunca trabalhei em restauro, ou numa biblioteca que tivesse um departamento de restauro. Limitava-me a atar os livrinhos com fita de nastro, quando estavam muito danificados, para evitar que se perdessem mais partes ou pedia a uma Senhora muito jeitosa, que trabalhava comigo, que lhe fizesse uma espécie de embalagem em papel. Eu tentava sempre catalogar tudo e julgo que na Biblioteca Nacional também o tentavam fazer, sempre que era possível.

    Mas, enfim, com muita pena minha nunca mais voltei a trabalhar em livro antigo, mas foi um trabalho que me deu enorme satisfação.

    ResponderEliminar