Comprei-o há uns quatro anos em Paris, no Marché aux Puces, um verdadeiro achado pelo preço, 10€, considerando a antiguidade e a importância desta obra. É certo que se trata de uma encadernação de couro em oitavo, por isso tamanho de livro de bolso, e o estado de conservação não é muito bom, mas eu queria muito ter um livro do séc. XVII e ainda não tinha encontrado nenhum a preço que eu achasse razoável.
Já não tinha folha de rosto, o seu bilhete de identidade, e por isso não me apercebi imediatamente do que é que tinha nas mãos. Atraiu-me, para além da data, o texto da dedicatória , na primeira página impressa, que com os restos do meu latim dos tempos de estudante, percebi dirigir-se ao Príncipe Henrique da Grã- Bretanha, daí achar que a edição seria inglesa. Todos os dados para a identificação da obra foram retirados das páginas 6, 7 e de todas as que introduziam novos títulos, mas há pormenores que só a página de rosto poderia fornecer. Por exemplo, não conheço o título em latim, que deverá ser Opera Omnia mas em combinação com o nome do autor, o que poderá ter diferentes formulações.
Quintus Horatius Flaccus (65A.C.-8A.C.) era o nome completo do poeta Horácio, o maior poeta lírico da Roma do tempo de Augusto, tendo nascido em Venúsia e morrido em Roma. É uma grande referência dos poetas que se lhe seguiram ao longo dos séculos - incluindo o nosso Camões - pelo menos até ao Romantismo, e deixou grandes marcas na cultura ocidental.
Várias expressões latinas ainda hoje utilizadas são da sua autoria, como carpe diem, que significa à letra agarra o dia, ou seja, aproveita o momento presente, que utilizou no título de uma ode e foi um dos principais temas da sua poesia; outra foi aurea mediocritas, a apologia de um estilo de vida simples, o grande lema do nosso Alexandre Herculano ao retirar-se para a sua quinta de Vale de Lobos, para citar apenas um caso ilustrativo.
Horácio teve, tal como o poeta Virgílio, a protecção de Mecenas, grande confidente e amigo do Imperador Augusto. No nome próprio teve origem o substantivo comum mecenas, utilizado até hoje para designar os protectores das artes, e a palavra mecenato, dela derivada.
A obra em 258 páginas impressas em caracteres minúsculos, é anotada e contém os seguintes títulos, que traduzo do latim: Odes ou Canções; Epodos; Sátiras; Canções seculares; Epístolas; Arte Poética.
Acima vê-se a página da dedicatória. Este Príncipe D. Henrique da Grã-Bretanha era Henry Stuart (1594-1612), Príncipe de Gales à época, uma verdadeira figura da Renascença que congregou e inspirou um manancial de manifestações culturais e artísticas. Recebeu as dedicatórias de mais de cem livros impressos, atingindo o número máximo em 1612, ano do apogeu da sua corte, mas também o ano da sua morte prematura, atribuída a doença provocada pela extrema exigência da educação a que foi sujeito, embora hoje se pense que ele morreu de febre tifóide.
A Maria Andrade voltou à sua paixão, o livro antigo. Passaram-me muitos livros quinhentistas pelas mãos. Os exemplares que aparecem nas bibliotecas portuguesa são normalmente impressos em Veneza, Lião (Lugdunun), Amesterdão e Antuérpia. Só mais tarde no século XVII se diversificam os centros de impressão e começam a aparecer muito mais obras em português, espanhol e francês e menos em latim e grego. Em Portugal, livros ingleses dessa época é mentira.
ResponderEliminarA imagem da bonita encadernação que mostrou traz-me a memória estas impressões do tempo em que cataloguei livro antigo, um trabalho que sempre me deu prazer.
Era também muito curioso observar que os livros impressos nos séculos XVI, XVII e XVIII eram de muito melhor qualidade que os livros do século XIX ou primeira metade do XX. Tratei algumas bibliotecas memoriais em que os segundos estavam todos a desfazerem-se e os primeiros, mantinham um estado quase impecável, apesar da acção de dois ou três séculos de existência.
Quantas pessoas haverão que ainda lêem Horácio ou Virgílio hoje em dia? No século XIX, as pessoas cultas ainda os liam. Hoje, talvez um ou outro estudante de clássicas, obrigado a isso para fazer algum trabalho académico. Por vezes penso que eu próprio me devia abalançar a ler os clássicos, mas o tempo não dá para tudo
Abraços
Pois é, Luís, esta área do livro antigo também é muitíssimo empolgante porq é um nunca acabar de descobertas e uma enorme fonte de conhecimentos. Sobretudo estes livros sem página de rosto, e eu tenho vários, obrigam a pesquisas infindáveis em q se encontram coisas q nem sequer procurávamos. Já descobri q a primeira oficina de impressão em Londres foi estabelecida em 1475 por um tal William Caxton, regressado do continente europeu onde tomou contacto com a arte da imprensa. O meu livro é certamente de uma oficina de Londres, Londinium, porq o nome do anotador q surge no final do texto dirigido aos leitores, Io. Bond, aparece numa edição de 1606, numa listagem de edições q encontrei na net, acompanhado de Londi. e também vi a associação dos dois nomes noutras edições. Assim se vão juntando as peças do puzzle... É natural q em Portugal não se encontrem edições inglesas desta época, os livros deviam chegar muito por via clerical e as relações eram mais com o mundo católico, não com o protestantes, pelo menos é esta a minha dedução. Penso q Roma, Veneza e Antuérpia eram os principais centros de impressão estrangeiros do livro antigo q se encontra em Portugal.
ResponderEliminarFoi um prazer ler as suas achegas sobre este assunto, até porq não é fácil encontrar quem se interesse por velhos alfarrábios e pelas curiosidades a eles ligadas.
Um abraço e bom fim-de-semana.
Confesso a minha ignorância sobre o livro antigo.
ResponderEliminarHerdei um reduzidíssimo número de livros antigos, apesar de ter na família quem possua alguns dos volumes da original "Encyclopédie" de Diderot e d'Alembert, que folheio sempre com algo de medo e reverência, por todo o carisma que a eles está associado.
Mas fora isto, os poucos livros que havia foram-se perdendo com as viagens dos meus pais, que, ao longo da sua vida, mudaram de casa (com longas viagens de barco à mistura) cerca de 15 vezes ... e as coisas foram ficando esquecidas aqui e ali. Pouco restou.
Por vezes parece que se passou uma gigantesca esponja sobre parte da minha infância! Parte dos nossos (da minha irmã e meus) livros de infância pura e simplesmente desapareceram.
De qualquer forma, os meus bisavós eram gente rural, pouco dados às letras, apesar de saberem ler e escrever (vai-se lá saber como aprenderam!), e pouco mais.
Restou uma meia dúzia de livros que se foram arrastando, creio que sem qualquer interesse especial, e que me vieram parar às mãos - e em mau estado.
Todos os outros volumes menos novos já foram adquiridos por mim, mas têm em comum o estarem relacionados com assuntos práticos relacionados com as minhas áreas de interesse, sobretudo a Arte, o Desenho, a Botânica ou a História Natural.
Fico perfeitamente ensimesmado quando folheio livros com belíssimas estampas de Botânica, sobre a arte do Desenho, ou da Geometria ou ainda tratados de Perspectiva dos séculos XVIII ou XIX, que outros mais antigos não consegui encontrar, e ainda que encontrasse, dificilmente estaria pronto a pagar o que pedem por eles!
Recuso-me completamente adquirir um volume de qualquer coisa só porque é a 1ª edição quando ao lado está um igualzinho da 20ª, mas a 1/10 do preço do primeiro! Nem pestanejo! Adquiro o mais barato, pois o que me interessa é o conteúdo!
Perceber como resolviam problema de perspectiva a que hoje somos alheios, porque entretanto outros métodos surgiram. Reparar como, em Botânica, se resolve o desenho de porções minúsculas das diversas partes da planta, pois nem sempre os microscópios tiveram o alcance que possuem hoje! É um mundo fascinante!
E dedico-me a eles de forma interessada, mas nem sempre aturada!
Recuperar livros ... bem isso não sei, mas confesso que gostaria!
Passo algo de tempo de volta deles quando consigo, o que vai sendo cada vez mais raro, mas qualquer dia ... desforrar-me-ei!
E quando vejo à venda gravuras dum velho livro retalhado não lhes resisto, num misto de pena e fascinação, tentando imaginar de onde terá vindo aquilo tudo!
Fico admirado como consegui escrever tudo isto sem saber nada sobre o livro antigo! Peço desculpa por utilizar a artimanha de escrever e nada dizer! :)
Manel
Disse aqui muita coisa, Manel, e deu um testemunho muito interessante da sua relação com os livros, antigos ou não. Quem tem cultura e domina a escrita consegue escrever sobre praticamente qualquer assunto, mesmo q à partida pense q não percebe nada daquilo... É só começar a puxar pelo fio das palavras e elas surgem naturalmente... Por falar em livros da sua área, com a minha mania de às vezes comprar livros de arte, tenho dois livros sobre arquitetura: um é francês, editado em Paris, generalista e portanto destinado ao cidadão comum. O título é "Architecture" e o autor Paul Cornu, à data bibliotecário do Museu de Artes Decorativas. Fazia parte duma coleção intitulada "Les styles a la portée de tous". Não tem data, mas como o último capítulo é sobre o séc. XIX, imagino q seja de final desse séc. ou princípio do XX. O outro é um livro magnífico intitulado "Arquitectura nos Açores,subsídios para o seu estudo" de F. E. de Oliveira Martins, editado pela Direcção Regional de Turismo em 1983.Foi-me oferecido há cerca de 10 anos pela minha amiga Fernanda Fournier de Angra do Heroismo.
ResponderEliminarTambém gostava de saber recuperar livros, mas a sério, com todo o preceito e saber, porq dou um jeito nalguns, mas só para lhes melhorar um bocadinho o aspecto e tentar parar o processo de degradação. Bem, a conversa já vai longa e há sempre mais a dizer, mas tenho q pôr um travão...
Um abraço e volte sempre aqui mesmo q seja para "utilizar a artimanha de escrever e nada dizer", o q é mentira.
Olá Maria Andrade
ResponderEliminarEsperei que comentassem para ler e aprender sobre o livro antigo que em abono da verdade nada sei.Apreciei os comentários do Luís e do Manel e consequentemente das suas explicações.
Já aqui disse que nunca fui de ler, não consigo explicar, leio só revistas e jornais e de trás para a frente,salto linhas, lamentavelmente volto a ler de novo porque algo não me suou bem na leitura.Na minha casa haviam livros. Um mais antigo o de António Nobre "SÓ",2º edição , a minha irmã ficou com ele, mais dada a poemas.
Aos poucos vou-me interessando nas feiras quando vejo encadernações antigas. Já os abro e folheio. O problema, o preço.
Bom post muito didáctico
Boa semana de trabalho
Beijos
Isabel
Olá Maria Isabel
ResponderEliminarAssim vamos aprendendo uns com os outros, desde que vamos disponibilizando aquilo que sabemos, uns mais numas áreas, outros noutras. É isso q é muito estimulante nesta partilha de posts, comentários e sugestões... A Maria Isabel também é muito generosa ao mostrar todas as suas belas peças (tem é q ser em doses mais pequeninas ... LOL), fala de preços, locais , histórias, não guarda nada na manga...
Ainda bem q já se interessa mais por livro antigo, é uma pena ser uma área do património tão desprezada e maltratada...O preço depende muito do vendedor. Eu comecei a comprar quando vi em feiras aqui perto, já há uns bons dez anos ou mais, livros do séc. XVIII em monte, a serem vendidos ao desbarato sem qualquer critério... Isso às vezes ainda acontece.
Muito obrigada pelas sua palavras e também uma boa semana para si.
É muito interessante como é que, a procura de informação para uma simples Vénus pré-histórica (réplica, concluí depois, o contrário seria quase impossível) que comprei há uns tempos na Feira da Ladra, me trouxe a blogues com assuntos tão curiosos e tanto do meu agrado.
ResponderEliminarO seu, foi um deles. Hoje, porque fala de livros antigos e porque tenho em mãos, a tentar restaurar, um, vou contar a sua história.
Comprei-o o ano passado, em Borba, numa casa de antiguidades, com encadernação de origem, mas com as capas muito maltratadas. Tinha por título "Obras Poeticas de Valadares", 1791, ano da publicação, vi que o seu autor era Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa e que o seu conteúdo eram, na sua maioria sonetos. Mas, o que me seduziu logo que o abri? Na primeira folha, além do título e do nome do autor, Valadares, tinha escrito, no topo e a meio da página, à mão, com tinta que terá sido preta mas que agora está desbotada, o seguinte:
A . M . O . R
Os pontos estão colocados a meio das letras que são bonitas quase desenhadas.
Por 10 euros trouxe-o para casa mas, só por este pequeno pormenor, eu não teria resistido a trazê-lo, a não ser que o valor que me pedissem fosse exorbitante.
Por consulta na internet soube depois que o seu autor tinha vivido de 1745 a 1815, que os seus sonetos, maioritariamente versando o amor, são de recorte camoniano, nota-se na sua leitura e que o meu livro não estava completo, faltam-lhe 34 páginas no fim.
Um exemplar igual, também com a lombada danificada e picos de humidade encontrei-o à venda, num alfarrabista na internet, por 80 euros.
Estou a restaurar o meu, neste momento, porque aprendi há uns anos a fazê-lo. De uma forma meio artesanal pois não o desmanchei, limitei-me a remendar e a colar o que estava maltratado e coloquei-lhe nas guardas papel pintado manualmente folha a folha, como se fazia antigamente, que se vende para esse efeito nas casas que comercializam, ainda, os materiais apropriados para a encadernação.
Muito obrigada mais uma vez pelos assuntos tão interessantes que publica.
emília reis
Cara Emília Reis
ResponderEliminarJá conhecia o seu nome dos comentários muito oportunos que tem feito nos blogues do Mercador Veneziano.
É muito estimulante encontrar desse lado pessoas com os mesmos gostos e saber q o q vamos aqui publicando aí encontra eco e aceitação.
Muito obrigada por ter aqui partilhado essa história de um livro de poesia do séc. XVIII,
com pormenores muito interessantes e a mais- valia de o ter conseguido a bom preço. O tipo de retauro q fez é o q eu costumo fazer nos meus livros antigos, mas sem grande perícia ou Know-how. Tenho restos de materiais q o meu pai utilizava nas encadernações dos seus próprios livros e são esses q utilizo. Adorava fazer um curso nessa área, mesmo de curta duração, mas vivo muito longe de Lisboa q é o único local onde tenho conhecimento da existência desses cursos de restauro e encadernação.
Uma boa noite e volte sempre.
Maria Andrade
Prezada Maria Andrade,
ResponderEliminarMeu nome é Stefanie Freire, sou bibliotecária e atualmente faço mestrado em história na UNIRIO. Gostaria de saber aonde você retirou as informações do último paragráfo do seo post? Se se seria possível você me enviar a página da dedicatória aproximada? Gostaria de ilustrar a minha pesquisa com essa dedicatória deslumbrante.
Obrigada pela atenção, muito obrigada de verdade!!
Stefanie Freire/Rio de Janeiro
e-mail: stefaniefreire@yahoo.com.br
Cara Stefanie Freire,
ResponderEliminarTive muito gosto na sua visita ao meu blogue e ainda bem que achou interesse neste texto sobre o meu livro com a dedicatória ao Príncipe Henrique Stuart da Grã-Bretanha.
Na altura em que fiz o post, li muita coisa sobre esta personagem histórica, sobretudo on line, por isso é-me difícil dizer agora de onde retirei aquela informação, mas deixo-lhe aqui um link de uma página onde parte dela está expressa: http://www.suebond.co.uk/events/release.php?eventid=248
Quanto à página da dedicatória aproximada, se fizer duplo clique ela aumenta, mas vou fotografá-la de novo e enviá-la por e-mail, talvez assim ela aumente mais.
Um abraço